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Ex-boina-azul no Sudão defende mais mulheres em forças de paz

A boina-azul que operou na Missão Integrada de Assistência à Transição das Nações Unidas no Sudão, Unitams, e militar brasileira, Gabriela Rocha Bernardes é a entrevistada deste 12 de julho no Podcast ONU News.

Ela conta que foi evacuada do Sudão após a escalada de violência no país africano desde abril. Os combates entre tropas do exército e paramilitares já deixaram centenas de mortos e milhares de deslocados.

Em Nova Iorque, retornando da missão onde ficou quase um ano, a major do Exército Brasileiro conta sobre seu treinamento para ir ao terreno e os principais aprendizados que teve em sua passagem pelo Sudão.

Acompanhe a conversa com Eleuterio Guevane e Mayra Lopes.

ON: O mundo vive um novo conflito. A África vive há cerca de três meses um novo episódio com violência que não era esperada. A nossa convidada de hoje é uma boina-azul e é militar. Esteve quando tudo começou, no início de uma missão para estabilizar um país africano com um longo historial de conflito.  Como que você chegou nessa missão? Qual é seu histórico militar e como foi o processo de se juntar a uma missão das Nações Unidas?

Gabriela Bernardes: Eu sempre tive vontade de participar de uma missão da ONU ou uma missão de cunho humanitário, desde que eu estava na faculdade de jornalismo e eu tive essa oportunidade através do Exército, onde eu sirvo já há mais de 18 anos na área de comunicação social e eu me voluntariei. A gente precisa ser voluntário para participar do processo seletivo. 

Em 2018, eu tive a chance de fazer o primeiro treinamento no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil, Ccopab, e um estágio de idiomas no Centro de Idiomas do Exército. Fiquei aguardando um convite, uma seleção que acabou acontecendo em 2021, já no final do ano, quando eu estava onde eu estava também no Ccopab, fazendo um outro curso específico para preparação de militares do segmento feminino para missões de paz. 

Eu recebi a informação de que eu tinha sido selecionada para a Unitams, no Sudão. Eu tive mais ou menos seis meses para me preparar e ser desdobrada no terreno.

ON: Dizem que um jornalista raramente se emociona, que temos que buscar relatar os fatos. É jornalista, é militar, esteve lá numa missão de estabilização. Estas lágrimas, o que é que significam quando fala do Sudão?

GB: Acho que ainda é emoção de dia de ter acabado de sair de lá e de ter vivido isso por quase um ano. Essa experiência absolutamente transformadora, com vivências que certamente já estão agregadas na minha vida pessoal e profissional e vão ficar para sempre na memória. Então, falar do Sudão ainda é mexer com muita coisa que aconteceu nesse período.

Aconteceram expectativas, que a gente não pode ter nesse tipo de atividade, e já fica a sugestão, a gente tem que viver a realidade. Fica uma vivência de uma realidade absoluta, absolutamente diferente da minha, do meu país, do Brasil, do nosso povo e de viver aquilo que a gente tem, daquilo que o terreno nos oferece, aquilo que a realidade nos oferece, seja em termos de conforto, de alimentação, de expectativas, como eu falei.

Porque a gente vai para viver uma missão com essa missão, neste caso uma missão política especial, com a expectativa de fazer parte da transição política do Sudão, que era o que se esperava e que estava em vias de acontecer. Mas, infelizmente, eu fui participar de um processo de paz e acabei vivenciando um conflito. Então não tem como não mexer com a gente.

ON: Aqui em Nova Iorque, a gente fala muito sobre a participação das mulheres nas missões de paz, nas missões de estabilização. Um dos processos que você está fazendo que passou foi justamente esse treinamento específico para as mulheres no Brasil. O que tem de diferente nesse treinamento para mulheres e como que é de fato estar lá no campo e ter essa vivência, sendo ainda a minoria no terreno, sendo mulher.

GB: Olha o Brasil, eu falo de carteirinha assim, prepara a gente muito, tem uma expertise imensa. Já são anos preparando boinas-azuis para atuarem sob a égide da ONU e eles agora estão trabalhando, por pedido da ONU, para aumentar esse equilíbrio de gênero. A gente tem essa experiência já e foi muito importante. 

Eu não falo por tudo o que eu vivi no terreno, mas como o treinamento me preparou. Eu saí do Brasil extremamente preparada para viver as experiências que eu vivi, inclusive as experiências de evacuação e de tensão. A gente treina isso lá.

Especificamente para as mulheres, a gente trabalha não só essa parte de equilíbrio de gênero, como as dificuldades em ser mulher por estar no terreno também. E a gente aprende algo muito importante, que é o motivo pelo qual a ONU busca esse equilíbrio de gênero, que é a gente poder conversar com as mulheres que estão no país e que vivem aí os efeitos de um conflito, de uma guerra, porque as mulheres são ainda, infelizmente, usadas como armas de guerra.

A gente aprende lá como lidar com elas, como conversar com elas, como poder estar no terreno e trazer essas demandas específicas de mulheres para nossa missão, para nosso canal de comando, para a gente poder tentar agir em prol dessas mulheres que estão sofrendo os conflitos. Como parte dos conflitos, elas precisam fazer parte das soluções. É isso e é isso que a gente fala, é isso que a gente coloca nas nossas palestras, nas nossas conversas no terreno.

No meu caso, a gente vivia tanto com militares do governo do Sudão e de grupos armados. Então, a ideia era mostrar isso para eles de uma maneira que a gente pudesse agregar essas mulheres ao processo de paz.

Uma menina de 12 anos (à direita), que vive em um campo para deslocados no estado de Darfur do Norte, no Sudão, diz que foi estuprada por soldados do governo
Unicef/Ron Haviv

 

Uma menina de 12 anos (à direita), que vive em um campo para deslocados no estado de Darfur do Norte, no Sudão, diz que foi estuprada por soldados do governo

ON:  Que histórias é que saíram do Sudão, que não sairiam da população  contando ao homem militar?

GB: Infelizmente, a gente ainda vê muitos e rotineiros casos de violência sexual, da não participação da mulher nos processos, ainda mais de decisão, de tomada de decisão para aquela comunidade, para aquele grupo. Então, seja em grupos religiosos, sejam em grupos estudantis.  Eu fiquei feliz de ter esse contato com a Universidade de Al Fashir, no norte de Darfur, onde eu estava morando, de ver muitas mulheres já podendo estudar, frequentando a universidade.

Mas elas ainda não estão, por exemplo, no governo. Elas não estão representando grupos armados. A gente sabe que elas fazem parte também e é muito importante que isso aconteça. Então elas ainda sofrem essa violência, essa violência diária. E infelizmente a gente recebia relatórios de segurança diários com essas, esses casos de violência e covardias, de não poder, por exemplo, conversar com um homem, de estar sozinha andando na rua, tinha sempre que está ou era o marido ou era a família. Então ainda tem essa questão cultural e até mesmo religiosa, de afastar as mulheres, de não as deixar participar de todos os processos que elas deveriam estar.

ON: Mas durante esse quase um ano no Sudão, qual foi o grande aprendizado que traz de volta para o Brasil? Para sua carreira, para a sua vida?

GB: Olha ela, além do orgulho de ter participado de uma missão da ONU – de ser uma boina-azul, representar o Brasil nesse cenário internacional em prol da paz que o mundo tanto precisa, em especial nos dias de hoje – o que eu aprendi muito lá com a convivência, principalmente com o povo do Sudão e também com os meus colegas de missão, é muito mais tolerância, muito mais respeito, muito mais humildade e gratidão. 

A gente percebe o quanto a gente já teve e já recebeu na vida da gente. E chegando num país com tantas necessidades, em que a gente passa falta de luz, falta de gêneros básicos, falta de água, falta de muitas coisas que nós consideramos básicas e que ainda não tem. A gente aprende a dar muito valor e ser muito grato por tudo e aprende até ficar mais calmo, a ver que tantas coisas que a gente reclama, que às vezes a gente vê que é besteira, que não é isso que nos move.

Tem muito mais coisa nesse universo que a ONU propicia, que o Brasil está fazendo parte, já que já faz parte há muitos anos, mas que continua e vem crescendo, inclusive com a participação de mulheres nas missões. A gente aprende a dar muita gratidão.  

A gente vai buscar a paz, sai no conflito, mas a gente volta com a paz, com a sensação de estar podendo fazer um mínimo, de fazer a nossa parte aqui. Eu saí de lá mais calma e apesar de tudo que eu enfrentei, eu saí muito mais feliz.

Eu descobri que a gente tem que querer muito, porque passar por tudo isso não é fácil. Estar aqui conversando e falando aqui depois de ter vivido esse processo, fica mais fácil. Mas eu descobri que é difícil e a gente tem que querer muito. 

Quem quer, quem realmente tem vontade de abrir mão disso tudo e de enfrentar esses desafios: vá, eu digo vá. 

A gente vai naquela expectativa de ajudar e a gente que volta carregando muito mais exemplos, muito mais coisas boas que eles nos dão com essa capacidade de viver com o mínimo. Se você tem essa vontade, esse desejo de encarar qualquer desafio, porque a gente não pode escolher, né? A gente tem que encarar aquilo que vem e o que vem. Você tem que estar disposta a viver isso. Então se você realmente quer, vá, porque vale muito a pena. 

Fonte: ONU News – Foto: Arquivo pessoal

 

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