Estado de Minas – A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Bondades — que libera o governo para aumentar o valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, dobrar o valor do vale-gás e transferir dinheiro para o bolso dos caminhoneiros e taxistas — a menos de três meses do primeiro turno das eleições só foi possível porque o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), usou e abusou do poder que tem para manobrar o Regimento Interno da Casa. Ele driblou ritos e protocolos, alterou prazos e promoveu mudanças de última hora nos processos de votação em plenário. Sem esse “esforço concentrado”, dificilmente o presidente Jair Bolsonaro (PL) receberia o cheque de R$ 41,2 bilhões às vésperas da eleição para tentar melhorar sua pontuação nas pesquisas de intenção de voto.
A PEC rompe paradigmas que eram considerados intocáveis, como a proibição de criar ou ampliar gastos em benefícios sociais nos seis meses que antecedem as eleições e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Com a aprovação do estado de emergência, a regra, que protegia o processo eleitoral do poder econômico do governante de plantão, pode ser atropelada. Mas havia um desafio que só foi superado com a ação direta do presidente da Câmara: aprovar o pacote em tempo hábil de colher frutos antes do primeiro turno, em 2 de outubro.
Lira fez com que a PEC tramitasse sem precisar passar pela comissão especial que, regimentalmente, deveria apreciar a matéria. Para isso, juntou (apensou, no termo técnico), na semana passada, o projeto do estado de emergência a outro, que já tramitava na Casa e havia passado pelo crivo das comissões: a PEC Nº 15, que prevê regime fiscal diferenciado para biocombustíveis (etanol e biodiesel). Dessa forma, a PEC das Bondades seguiu diretamente para o plenário, de carona com a PEC 15. O Tribunal de Contas da União (TCU) abriu investigação para apurar a legalidade da medida.
Para as votações, Lira promoveu, com a ajuda da maioria governista e de algumas canetadas, alterações de ritos regimentais. A primeira foi acelerar o prazo de 10 sessões desde a apresentação da PEC até a votação na comissão especial, previsto no Regimento. Para que o projeto entrasse na pauta de votações, a 10ª sessão regimental foi aberta às 6h30 do dia 7 e encerrada exatamente 60 segundos depois, às 6h31.
Foi preciso, ainda, acabar com o “interstício” de cinco dias entre as votações em primeiro e segundo turnos. Ainda no dia 7, os deputados aprovaram um requerimento que permitiu que a matéria pudesse ser votada em dois turnos no mesmo dia. Mesmo assim, por falta de quórum, Lira decidiu adiar as votações para esta semana.
Apagão
Às vésperas do recesso legislativo, que começa na semana que vem, Lira e aliados governistas não estavam dispostos a correr riscos com manobras da oposição para obstruir as votações. A ordem era votar a toque de caixa. Mas apareceu um problema: na terça-feira, após a aprovação do texto-base da PEC, o quórum havia ficado perigosamente baixo para a apreciação dos destaques. E a oposição havia protocolado um deles justamente para tentar derrubar o estado de emergência, pedra fundamental da proposta do governo. Foi aí que um “problema técnico” acabou ajudando na solução. Um apagão no sistema de informática da Câmara fez com que Lira suspendesse a sessão e remarcasse a votação para o dia seguinte. A intenção era manter o quórum da véspera, mas a oposição chiou, e Lira voltou atrás, encerrando a sessão com a promessa de abrir outra, no dia seguinte.
Para assegurar o quórum na segunda votação, com muitos parlamentares já de volta a seus estados, foi preciso lançar mão de mais uma manobra regimental. Lira assinou um Ato da Mesa para que deputados pudessem registrar presença e votar remotamente, isto é, sem precisar estar presencialmente em plenário. A votação remota era permitida desde o início da pandemia da covid-19, mas estava limitada às sessões das segundas e sextas-feiras. Com uma canetada, o parlamentar removeu o último obstáculo no caminho da PEC, que acabou aprovada e, ontem, foi sancionada.
Para o líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes (MG), não dá para afirmar que Lira burlou o Regimento. Na avaliação dele, o presidente da Casa atuou no limite de suas atribuições, diante do fato de que o governo “tinha dificuldade para superar o destaque da medida de emergência”. “É evidente que o governo seria derrotado”, disse ao Correio. “Lira usou as brechas regimentais e impôs uma maioria, mas esse não é o melhor método para alterar a Constituição”, declarou. Na sessão, o único deputado do PT que votou contra a PEC foi Frei Anastácio (PB). Já Rogério Correia (MG) se absteve.
O cientista político Leandro Gabiati, da Dominium Consultoria, lembrou que o poder tem algumas leis, entre elas, a de que não há vácuo. E cita como exemplo os casos da presidente Dilma Rousseff, “que não foi pragmática, não teve habilidade para lidar com o Congresso”; de Michel Temer, “acuado pela Lava-Jato”; e do próprio Bolsonaro, “que escolheu delegar o poder ao Congresso”. Nos três períodos, o protagonismo político foi exercido pelo Parlamento. Para ele, mudanças casuísticas no meio do processo legislativo criam “incertezas, desvirtuam as instituições e maculam a reputação do Poder Legislativo”.
“Os presidentes da Câmara e do Senado se sentem à vontade para fazer esses tipos de manobra, de não respeitar questões normativas, acomodando as regras para fins político-eleitorais. E isso não se dá só no Regimento Interno. A Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal não estão sendo respeitadas, assim como a Lei Eleitoral”, avaliou.