Apenas 83 das 2.000 cisternas prometidas pelo governo federal a escolas do Nordeste, em agosto do ano passado, foram entregues. Os outros 95,9% dos equipamentos não foram feitos e não há certeza de que haverá orçamento para cumprir a meta até 2022.
O projeto “Água nas Escolas” foi lançado com pompa em 2020, em uma cerimônia que contou com a participação do presidente Jair Bolsonaro. A promessa era levar as 2.000 cisternas e ajudar 100 mil alunos nas zonas rurais e de periferia em cerca de 350 cidades do Nordeste.
“Nós, aqui, às vezes não damos muito valor à água, temos em abundância. Lá, quando você vê um velho nordestino, uma senhora de idade, com pele enrugada, entrando debaixo de uma bica d’água, não tem preço a alegria daquela pessoa, parece que ganhou na Mega-Sena”, disse Bolsonaro, na ocasião.
O programa contava com um aporte prometido de R$ 60 milhões, em parceria com o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e a Fundação Banco do Brasil. A ideia era atender dois terços das 3.000 escolas com falta de água no Nordeste, segundo o último Censo Escolar. Entretanto, caiu o ritmo de construção de cisternas na região.
Referência mundial, programa encolheu
Apesar do baixo custo, o premiado programa Cisternas (que fez mais de 1 milhão de equipamentos no semiárido) foi deixado de lado pelo atual governo.
Em 2020, por exemplo, houve a menor quantidade de cisternas construídas desde o lançamento do programa, em 2003: apenas 8.310. Em 2021, o número deve ser ainda menor e ficar próximo a 3.000 equipamentos.
O programa atua com a construção de três tipos de cisternas:
- Familiar (para consumo humano, de 16 mil litros);
- Produção (para abastecimento de produções e criações de animais familiares, de 52 mil litros);
- Escolares (com capacidade para 52 mil litros).
É uma referência mundial e foi consagrado internacionalmente, recebendo, por exemplo, o Prêmio Sementes 2009, da ONU (Organização das Nações Unidas), para projetos de países em desenvolvimento feitos em parceria com organizações não governamentais, comunidades e governos.
No caso das cisternas escolares, as entregas começaram apenas em 2012. Desde então, foram 7.500 escolas beneficiadas —7.300 entregues até 2019.
Com o lançamento do programa de Bolsonaro, apenas 83 equipamentos foram construídos em escolas, tendo a última sido entregue em agosto.
Cisternas escolares construídas mês a mês:
- Agosto/2020 – 0
- Setembro/2020 – 0
- Outubro/2020 – 1
- Novembro/2020 – 14
- Dezembro/2020 – 11
- Janeiro/2021 – 0
- Fevereiro/2021 – 3
- Março/2021 – 18
- Abril/2021 – 12
- Maio/2021 – 2
- Junho/2021 – 0
- Julho/2021 – 21
- Agosto/2021 – 1
- Setembro/2021 – 0
- Outubro/2021 – 0
- Total – 83
Uma cisterna escolar é feita de placas de concreto, tem capacidade para acumular 52 mil litros de água e é construída com 3,5 m de raio e 1,8 m de profundidade.
Coberta e semienterrada, ela permite a captação e o armazenamento de águas das chuvas em um reservatório protegido da evaporação e das contaminações por animais. O custo estimado de cada um desses equipamentos é de R$ 15 mil.
Em nota ao UOL, o Ministério da Cidadania informou que o programa “segue em trâmite, com o intuito de viabilizar a publicação de edital o mais breve possível”. A pasta mantém a meta de levar 2.000 cisternas a escolas públicas rurais.
Destaca, porém, que a “retração econômica causada pela pandemia de covid-19, nos anos de 2020 e 2021, impactou, entre diversos outros setores, a construção civil”.
“Além da escassez de material de construção disponível no mercado, as entidades executoras das tecnologias sociais de acesso à água registraram preços até 100% superiores aos praticados no período anterior à pandemia. Para acompanhar esse novo cenário, o Programa Cisternas está atualizando o custo unitário de referência de suas tecnologias sociais e buscando recursos externos para financiar a contratação de mais reservatórios”, diz.
Para 2022, a pasta diz que solicitou ao PLOA (Projeto de Lei Orçamentária) R$ 60 milhões para o programa.
Sem água, sem aula
Sem cisternas, a comunidade escolar fica prejudicada e, muitas vezes, não tem aula nem comida. “Agora fizeram uma distribuição de água com um novo poço aqui na comunidade. Mas ainda acontecem problemas de falta de energia e falta de água aqui —o que não ocorreria se tivéssemos uma cisterna”, afirma Josefa Uchoa Pereira, diretora da escola Abílio Véras Filho, da comunidade Pedreira, em Castelo do Piauí (PI).
A unidade atende 126 alunos do ensino infantil e fundamental e está situada em uma região de baixo índice pluviométrico.
Nos anos anteriores tínhamos muita dificuldade porque, além de a água não ser de qualidade, vinha de um poço. A bomba, quando queimava, demorava a ser restaurada. Precisávamos liberar os alunos por conta da falta da água. Com uma cisterna, nada disso aconteceria. Ter cisterna seria um processo maravilhoso não só para a escola, mas para toda a comunidade.”Josefa Uchoa Pereira, diretora da escola Abílio Véras Filho
Mudança para melhor
Onde há cisterna, a mudança é perceptível. O MOC (Movimento de Organização Comunitária) atua no semiárido baiano e foi uma das entidades que ajudou a construir cisternas em diversas escolas na região.
“A grande maioria dessas escolas de comunidades longínquas tinham problemas com relação à água. Os professores precisavam, muitas vezes, liberar os alunos mais cedo porque não tinham água nem para beber. Isso trazia sérios prejuízos, tanto educacionais como de infraestrutura. Os banheiros, por exemplo, eram um problema”, conta Ana Paula Duarte, educadora de campo do MOC.
Ela lamenta que o programa Cisternas tenha tido corte de recursos. Explica que o projeto treina toda a comunidade escolar para o bom uso da água.
“Os módulos [do curso feito] tinham como objetivo trabalhar o conceito de educação contextualizada, a partir dessa cisterna enquanto uma ferramenta pedagógica. Um deles é como manejar a cisterna através do curso de gerenciamento de recursos hídricos na escola”, diz.
A doutoranda em Ensino e História de Ciências da Terra pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Kezia Andrade dos Santos fez sua pesquisa de mestrado estudando o impacto das cisternas escolares e viu que os equipamentos mudam a realidade das unidades rurais de ensino, evitando inclusive o fechamento de escolas.
É notório que a implantação é de fundamental importância para o funcionamento das escolas no ambiente rural, já que, devido à falta de água, entre outros fatores, muitas delas acabam sendo fechadas, como se discutiu ao longo da pesquisa. É um ato de ressignificação e protagonismo social ao beneficiar as escolas rurais e milhares de alunos com acesso à água.”Kezia Andrade dos Santos, pesquisadora
Segundo ela, o programa tem a preocupação de envolver toda a comunidade escolar. Essa realidade, diz, transforma a comunidade em que está inserida e traz um alto custo-benefício.
“A água devolve a dinâmica natural ao espaço de educação, onde professores e alunos podem refletir suas práticas e transformar efetivamente suas realidades, alinhados a uma proposta pedagógica sensível às necessidades de cada um desses atores sociais, que tornam o espaço escolar funcional”, conta.
Fonte: UOL