Apesar da margem estreita, a vitória de Pedro Castillo (Perú Libre) na eleição presidencial peruana se soma a conquistas recentes da esquerda na América do Sul, resultando em uma nova correlação de forças políticas na região, segundo especialistas em relações internacionais entrevistados pela BBC News Brasil.
Ou seja, o 0,25 ponto percentual que Castillo teve de vantagem em relação à oponente, Keiko Fujimori (Fuerza Popular), não são suficientes para dizer que o Peru, ou mesmo a América do Sul, estão aderindo de forma consistente e homogênea a projetos da esquerda.
Mas vitórias recentes ali, na Bolívia, Argentina e Chile, mostram que foi revertida, ao menos parcialmente, o que parecia ser uma onda conservadora protagonizada por Mauricio Macri em 2015 na Argentina e Jair Bolsonaro em 2018 no Brasil, entre outros.
Castillo teve 50,125% dos votos e Keiko Fujimori, 49,875%. Ele foi proclamado presidente pelo tribunal eleitoral do Peru apenas na segunda-feira (19/7), mais de um mês após a realização do segundo turno (6/6) e a conclusão da contagem de votos (15/6). Nesse meio tempo, Keiko abriu uma batalha judicial por acusar a eleição de fraude.
“Quando eleito (em 2019, na Argentina), Alberto Fernández não tinha um interlocutor na América do Sul. A primeira viagem dele foi ao México, porque ele não tinha um interlocutor na região. Agora, Fernández já tem dois interlocutores, no Peru e na Bolívia”, afirma Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), referindo-se à escolha de Luis Arce no pleito boliviano de 2020.
“E hoje os ventos estão mudando no Chile, com altas chances de um candidato de esquerda substituir (o presidente Sebastián) Piñera”, acrescenta Stuenkel, mencionando a vitória recente de candidatos afeitos a pautas de esquerda na formação de uma assembleia constituinte.
“A gente não pode falar do fim da onda dos presidentes de direita — porque ainda tem o Equador, Uruguai, Paraguai, Brasil e Colômbia (respectivamente com Guillermo Lasso, Luis Alberto Lacalle Pou, Mario Abdo Benítez, Jair Bolsonaro e Iván Duque). A Colômbia, aliás, pode ser um dos próximos países a virar, pois Duque está muito impopular. Mas claramente aquela percepção de que a ‘onda rosa’ tinha acabado, não parece ser o caso. A esquerda continua tendo candidatos competitivos”, completa Stuenkel, doutor em ciência política pela Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha.
Foi chamado de “onda rosa” o período de eleição ou reeleição de diversos nomes de esquerda na região no início dos anos 2000, como na Venezuela, Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia, Peru, Nicarágua e Equador.
Evidentemente, o presidente Bolsonaro representa o avesso desta onda rosa. Por estar rodeado de países que estão voltando a eleger a esquerda, ele pode justamente se valer disso em sua campanha à reeleição em 2022, na avaliação de Stuenkel.
Doutor em história latino-americana pela Universidade de Emory e professor na Universidade de Denver, ambas nos Estados Unidos, Rafael Ioris concorda.
“O que acontece no Brasil tende a influenciar mais a região do que o contrário, mas de todo modo, Bolsonaro fica mais isolado do ponto de vista diplomático quanto simbólico. Agora, isso não muda a narrativa dele: inclusive talvez reforce. Ele pode vir a dizer que precisa ser eleito porque a região está caminhando para o comunismo — o que não deixa de ser uma confirmação do seu isolamento”, aponta Ioris.
Impacto na relação Brasil-Peru
Para Oliver Stuenkel, as consequências diplomáticas da nova relação que se impõe, entre países comandados por Bolsonaro e Castillo, só não serão muito grandes pois o Planalto já não tinha uma política regional.
“O governo Bolsonaro não tem uma visão para a região, projetos de integração… Já os outros países precisam manter laços cordiais com o Brasil porque não têm outra opção”, diz o professor da FGV-SP.
Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra da importância do Brasil para a região, detendo boa parte de sua economia e território.
“As fontes de dentro do governo trazidas na imprensa brasileira indicavam que o governo brasileiro torcia muito pela vitória de Keiko Fujimori, e o argumento é sempre o mesmo: que as relações comerciais vão se degradar com um governo esquerda. Eu não compro essa narrativa, depois desses anos todos lidando com relações internacionais, sobretudo com o comércio exterior. Você vê que essa pauta ideológica corre muito à margem, há um pragmatismo enorme (no comércio). Então não creio em nenhum impacto direto e imediato”, avalia Lopes.
Por outro lado, ele reconhece a possibilidade do Peru de Castillo abandonar o Grupo de Lima, criado em 2017 para buscar soluções para a crise venezuelana — segundo o professor da UFMG, tendendo a uma posição dura contra Caracas.
“Um eventual impacto na relação bilateral Brasil-Peru não me parece ser algo calcado em fatos. É mais torcida, porque parece que tem de fato um reposicionamento da esquerda na América Latina. As últimas notícias parecem um alento para a esquerda”, diz Lopes, doutor em ciência política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais.
“Isso não quer dizer que a direita esteja enfraquecida na região. Não é o caso. Nessas eleições todas, a direita competiu forte.”
Quatro presidentes em três anos
Antes de fazer conexões entre a situação política no Peru e a do Brasil, é importante falar das particularidades do país vizinho.
Os entrevistados explicaram que o Peru não costuma eleger presidentes esquerdistas — eleito como tal, Ollanta Humala fez na verdade um governo com perfil mais direitista entre 2011 e 2016.
Os sucessores, Pedro Pablo Kuczynski e Martín Vizcarra, consolidaram uma orientação liberal em Lima. Por isso, a escolha de Castillo representa uma guinada à esquerda particularmente marcante para o Peru.
“Castillo representa uma ruptura maior do que se alguém vencesse na Argentina, ou até no Equador, México, que têm passados recentes de políticos mais à esquerda. E a eleição dele muda o equilíbrio da América Latina porque o Peru tinha se tornado, ao longo dos últimos anos, o queridinho dos mercados internacionais. O país seguiu as recomendações de modernizar a economia, de se tornar competitivo — e de fato demonstrou taxas de crescimento bastante altas”, aponta Stuenkel.
Entretanto, nos últimos anos, o Peru tem vivido também uma forte crise política. Desde 2018, o país já teve quatro presidentes, incluindo neste período a renúncia de Pedro Pablo Kuczynski e o impeachment de Martín Vizcarra.
“Nos últimos anos, o sistema político peruano teve vários problemas parecidos com o o Brasil. Investigações, escândalos de corrupção revelados diariamente, ex-presidentes presos, a percepção popular de uma elite completamente corrupta”, enumera Stuenkel.
Pistas para entender o cenário político no Brasil
Rafael Ioris acrescenta que a “profunda crise institucional” vivida pelo Peru nos últimos anos se refletiu nesta eleição na contestação aos resultados e na fragmentação partidária — entre muitos candidatos, Castillo e Keiko passaram para o segundo turno com menos de 20% dos votos cada.
“Isso reflete uma polarização profunda da sociedade peruana, e problemas sociais, econômicos e institucionais também profundos. Essa divisão deve continuar, porque a eleição mostrou que o país está dividido”, diz o professor da Universidade de Denver.
Dawisson Belém Lopes menciona, por exemplo, a divisão entre eleitores do litoral peruano versus selva amazônica, ou das áreas urbanas versus interior. O mapa de votos por região mostra de forma muito evidente uma preferência da área costeira por Keiko, e da interioriana por Castillo.
Para o professor da UFMG, a eleição peruana foi definida pela bipolaridade — e em países da América Latina com profundas divisões, como o Brasil, isso pode ser uma pista de que candidaturas alternativas, que tentam se apresentar como uma terceira via, dificilmente funcionam nesse cenário.
Remetendo a um termo catapultado pelas eleições presidenciais no Brasil em 2018, pode-se dizer também que o vencedor no Peru, Pedro Castillo, é um outsider na política — sem experiência em cargos no Executivo ou Legislativo do país, e sim como sindicalista e professor do ensino fundamental.
Keiko, por outro lado, leva no sobrenome um dos nomes mais importantes da história recente peruana. Filha do ex-presidente Alberto Fujimori, atualmente preso por abusos de direitos humanos, ela já teve outros cargos políticos e candidaturas.
Na disputa eleitoral, Castillo pode ter se beneficiado não por representar um campo ideológico, mas simplesmente por ser uma novidade, diz Rafael Ioris. “Não sei se o resultado é tão baseado em ideologias, ou é mais uma questão do cansaço do status quo. Por exemplo, no Brasil, se um candidato da oposição da Bolsonaro se eleger, não vai ser necessariamente porque o Brasil retomou uma agenda de esquerda como sociedade, como embarcou no inicio dos anos 2000, mas muito mais uma fadiga com a realidade atual.”
Para Dawisson Belém Lopes, esta insatisfação com o status quo pode explicar, em parte, o recuo da direita na América Latina — que há alguns anos ascendeu como novidade, e agora é testada pela realidade, como a da pandemia de coronavírus. “Os outsiders, logo que são incluídos no sistema, têm que arcar com o ônus de governar. Então, eles são depois punidos nas urnas por seu desempenho. Por exemplo, na pandemia, governantes que falharam em contê-la ou mitigá-la estão sendo punidos”, diz o professor da UFMG, acrescentando que a América do Sul é uma das partes do mundo que mais está sofrendo com a covid-19.
Democracia segue em risco
Considerando os últimos anos da política peruana e as divisões que persistem, antes e depois do resultado eleitoral, analistas alertam que a vitória de Castillo não garante um mandato estável — a história recente no país, e mesmo no continente, mostra que os pedidos de impeachment são quase uma constante a rondar os presidentes.
E segundo Oliver Stuenkel, o próprio Castillo representa um risco para a democracia, assim como sua oponente derrotada — que acusou a eleição de fraudulenta já nas primeiras horas de apuração das urnas.
“Tem várias perspectivas para analisar esse resultados das eleições. Certamente uma delas é a esquerda versus direita. Mas outra é que se trata de mais uma grande vitória de um outsider que representa o fracasso da política tradicional”, diz o professor da FGV.
“Quem mais perde com isso é a democracia, porque você tem dois candidatos que avançaram para o segundo turno cuja retórica contém vários elementos autoritários.”
Fonte: BBC News Brasil