Após o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, desistir de olhar pessoalmente as questões do Enem, o MEC (Ministério da Educação) prepara a criação de uma comissão permanente para revisão ideológica da prova. A iniciativa é refutada pela área técnica.
A Folha teve acesso à minuta de uma portaria do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) que estabelece a espécie de um tribunal ideológico, com a criação de uma nova instância de análise dos itens das avaliações da educação básica. O documento fala em não permitir “questões subjetivas” e atenção a “valores morais”.
O governo Jair Bolsonaro tem aversão a questões que abordem, por exemplo, qualquer discussão de gênero. Em 2019, o Inep criou uma comissão que censurou questões —elogiada por Bolsonaro, a ditadura militar (1964-985), por exemplo, não foi mais abordada no exame.
Agora, com a nova portaria, essa nova comissão de análise será permanente. O embate ideológico é a principal marca do governo Bolsonaro na área da educação.
A área técnica do Inep já se pronunciou de forma contrária à criação desse grupo. Segundo nota técnica obtida pela reportagem, a Coordenadoria de Instrumentos e Medidas do instituto argumenta que já há um longo processo de elaboração das questões, com ao menos sete etapas de revisão.
“Essa avaliação envolve, além das revisões técnico-pedagógicas, o escrutínio em um painel de especialistas, composto por professores com larga experiência em cada um dos componentes curriculares, tanto no âmbito acadêmico como no escolar, que compõem as áreas do conhecimento”, diz a nota, que ainda ressalta haver a validação estatística dos itens.
A nota cita que os itens censurados pela comissão de 2019 não têm sido levados em conta na montagem do Enem 2021. As perguntas censuradas nunca foram divulgadas, mas parecer dessa comissão mostra que foi sugerido, por exemplo, a troca do termo “ditadura” por “regime militar” em um item da área de Linguagens.
O exame é a principal porta de entrada para o ensino superior. O conteúdo é referência do que é ensinado nas escolas de ensino médio.
Procurado pela reportagem, o Inep não respondeu qual seria a justificativa técnica para o ato e quais critérios de subjetividade serão usadas para essa análise.
O governo Bolsonaro pretende publicar nos próximos dias a portaria, já nos trâmites finais dentro do órgão. A minuta aponta que a comissão será formada pelo presidente do Inep (cargo hoje ocupado por Danilo Dupas Ribeiro), o diretor de Avaliação da Educação Básica e outros dois integrantes externos por cada área avaliada pela prova.
Essas pessoas serão escolhidas pela direção do órgão. A iniciativa ainda provocará novos custos aos cofres públicos, uma vez que há previsão de remuneração extra para os envolvidos.
Um ofício do gabinete da presidência Inep levado à diretoria de Avaliação de Educação Básica órgão cita como justificativa para a nova instância as próprias declarações do ministro, que diz querer evitar questões que considera subjetivas.
Em entrevista recente, Milton Ribeiro disse que pretendia analisar pessoalmente as questões da próxima edição do exame para, segundo ele, evitar abordagens que entende ser ideológicas. “Sabemos que muitas vezes havia perguntas muito subjetivas e até mesmo com cunho ideológico, isso não queremos”, disse à CNN Brasil.
Ribeiro citou como exemplo uma suposta inadequação de questões de exames anteriores. Uma delas, de 2018, tratava de dialeto usado por travestis (mas não exigia conhecimento específico sobre isso) e outra, da última edição, sobre a diferença salarial entre homens e mulheres, a partir do caso dos jogadores Neymar e Marta. Ambas já haviam sido criticadas pelo presidente.
Houve repercussão negativa de sua declaração e, em audiência na Câmara no dia 9, Ribeiro disse ter desistido. O Inep teria, segundo falou na ocasião, governança suficiente para evitar os temas considerados inadequados.
Aos parlamentares, no entanto, não citou que planejava criar uma comissão de revisão.
Há um inquérito contra o ministro no STF (Supremo Tribunal Federal) por eventual crime de homofobia. Em setembro, o pastor evangélico disse em entrevista que a homossexualidade não seria normal e atribuiu sua ocorrência a “famílias desajustadas”. Na Câmara, pediu desculpas.
A própria escolha de um pastor para o cargo teve o objetivo de reforçar a postura ideológica do governo. Bolsonaro catapultou sua carreira política em uma cruzada contra abordagens do que ele e outros detratores chamam de “ideologia de gênero”, expressão não usada por educadores. Em 2013, disse ser homofóbico “com muito orgulho”.
Bolsonaro acumula críticas ao Enem desde que era deputado. Em 2015, atacou uma citação no Enem à filósofa francesa Simone de Beauvoir, o que seria, para ele, uma tentativa de doutrinação.
Ainda na eleição, prometeu avaliar pessoalmente as questões do Enem. Isso não ocorreu até agora.
A minuta da nova portaria traz uma série de critérios para a revisão das questões. Nesse leque, constam, entre outros pontos, o respeito a “valores cívicos, como respeito, patriotismo” e “estar livre de preconceitos ou discriminações de qualquer ordem”. O grupo teria de barrar “questões subjetivas” e que afrontem “valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade”.
O documento também cita que os itens devem estar em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular, que define o que os alunos devem aprender. Ainda não houve, no entanto, uma adequação sistemática do Enem ao previsto na base e na reforma do ensino médio.
As questões censuradas seriam excluídas do Banco Nacional de Itens. Além do Enem, essa comissão também avaliaria conteúdo de outras avaliações, como o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica).
Com informações Folha de São Paulo