Nos dez anos da criação da Lei de Cotas, principal política pública brasileira para redução da desigualdade de acesso ao ensino superior, pesquisa inédita realizada pela Box1824 e Empodera — plataforma pioneira na construção de negócios inclusivos e preparação de carreira e conexão de jovens com organizações que valorizam a diversidade —, identifica os impactos dessas ações afirmativas na vida das pessoas que as utilizaram. O estudo combinou metodologias qualitativas e quantitativas, focando na comparação entre dois grupos: os cotistas/beneficiários — pessoas que acessaram universidades federais utilizando as vagas reservadas pela lei 12.711 — e os elegíveis, estudantes que cumpriam os requisitos da lei, mas ingressaram no ensino superior por outros caminhos. De acordo com a lei, após dez anos de vigência, o Congresso Nacional deve revisar essa política para definir sobre sua continuidade, aperfeiçoamentos e ampliação.
A lei federal de cotas transformou, em apenas uma década, uma geração de beneficiários que acessaram às universidades federais. Entre os principais efeitos mapeados pela pesquisa, além de recomendações de engajamento para pessoas, empresas e meios de comunicação, destaca-se o impacto das ações afirmativas, que começa antes mesmo do vestibular.
O estudo mostra que 78% dos cotistas concordam com a frase “antes de saber sobre as ações afirmativas, eu não cogitava ir para o ensino superior”. Em contrapartida, 31% dos elegíveis que não usaram nem as cotas, nem nenhuma outra política afirmativa, acreditam, até hoje, que não se encaixam nos critérios da lei.
A pesquisa conclui, ainda, que as universidades federais representam um espaço inédito para muitas famílias. Entre os cotistas entrevistados, 95% afirmam que o ingresso no ensino superior foi motivo de orgulho para a família, enquanto 46% declararam que foram as primeiras pessoas da família a cursar uma faculdade, materializando sonhos de várias gerações. Ainda assim, por viverem um momento de calibração de uma política recente, enfrentam uma série de dificuldades emocionais e financeiras.
Julyana estimulou amigos e até a mãe a retomar os estudos(foto: Arquivo pessoal)
Cursando o primeiro semestre de artes cênicas na Universidade de Brasília (UnB), a estudante Julyna da Silva Patrolino, 19 anos, foi a primeira da família a ingressar em uma universidade. Foi aprovada no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), nas vagas de cota racial e de egresso de escola pública. O pai, Raimundo, 51, é pedreiro e tem apenas o ensino fundamental e a mãe, a dona de casa Neuza, 50, concluiu o ensino médio. Julyana conta que seu ingresso na universidade foi fator de motivação para amigos, parentes — até mesmo a própria mãe — a tentar a mesma sorte. “Minha mãe voltou a tomar gosto pelos estudos e está se preparando com afinco para o Enem”, conta.
A pesquisa da Box 1824 e da Empodera mostra que os cotistas vivem em uma corrida contra suas próprias histórias e fazem esforços constantes para compensar uma vida inteira de desigualdades. O estudo conclui que eles tendem a realizar um grande número de atividades extracurriculares ao longo da graduação de forma simultânea, motivados principalmente pelo desejo de compensar lacunas na formação, retribuir para a sociedade o que receberam e acumular experiências no currículo, ampliando, assim, o leque de oportunidades disponíveis tanto durante a graduação.
Julyana afirma que, apesar de ainda cursar o primeiro período, se envolve de corpo e alma em atividades extracurriculares. “Sempre procuro novas alternativas, mas devo me empenhar ainda mais no próximo semestre”, revela.
Mendes: “Me acusavam de ter roubado a vaga de outros. Me sentia culpado e pedia desculpas”(foto: Mariana Lins )
Após a graduação, ainda segundo a pesquisa, os cotistas enfrentam novas experiências de exclusão. O psiquiatra Lucas Mendes de Oliveira, 34, que ingressou no curso de medicina da UnB em 2006, por meio de cotas para negros, atingindo a primeira colocação e segundo lugar geral, conta ter enfrentado toda sorte de reações racistas. “Tinha que comprovar que passei em primeiro lugar e ouvia acusações como ‘você roubou a vaga de outros’. Chegava a me sentir culpado e até pedia desculpas”, recorda, lembrando ainda o episódio de uma professora que o expulsou da sala de aula, exigindo a comprovação de sua aprovação.
Ainda assim, Lucas admite que o ingresso na universidade ampliou sua visão de mundo, motivou e inspirou parentes e amigos a buscar uma formação superior e ampliou sobremaneira suas conexões, a exemplo dos 75% dos cotistas ouvidos na pesquisa, que disseram ter aumentado muito o seu ciclo de amizades e contatos profissionais. Esse contato com pessoas de diferentes realidades e origens foi descrito no estudo como o maior ganho do ensino superior, pois implicaram em uma expansão das suas perspectivas pessoais.
“Na UnB fiz grande amigos de diversos cursos, amizades que cultivo até hoje e certamente serão para toda a vida. Dificilmente teria um círculo tão vasto, que supera até mesmo o número de amigos de infância”, diz o psiquiatra, revelando que no iníicio de sua vida profissional também sofreu preconceito por ser negro, ter a pele tatuada e sotaque nordestino. “No início, enfrentei muita dificuldade no mercado de trabalho. Trabalhei por um ano, como voluntário, no Hospital da Forças Armadas e, mesmo com roupa de médico e crachá de identificação, notava que as pessoas evitavam se dirigir a mim. Não sabia como reagir. Já atendendo no meu consultório, era frequente ouvir reclamações sobre o valor da consulta. Percebi que o primeiro impacto que causamos na pessoa é por causa da raça, depois vem a estética”, diz Lucas.
O psiquiatra reforça mais um importante ponto do estudo, a de que, após a graduação, os cotistas enfrentam novas experiências de exclusão: o ingresso na área de formação, uma permanência que não seja adoecedora e, principalmente, a ascensão profissional. A conclusão é a de que, devido ao tabu sobre ações afirmativas no mercado, jovens profissionais altamente qualificados precisam migrar para outras áreas ou aceitar a estagnação em cargos de assistência. E a indicação é a de que o mercado pode e deve se inspirar mais em políticas públicas de inclusão bem-sucedidas para tornar-se mais eficaz na sua recente busca pela diversidade.
Outro fator apontado no estudo é que a formação universitária permite o acesso a trabalhos menos precarizados e a uma estabilidade financeira muitas vezes inédita para as famílias dos cotistas. Após o término da graduação, 73% dos entrevistados declararam que estão trabalhando, destes, 80% são CLT. Além disso, observou-se saltos de renda individual que chegavam a multiplicar em dez vezes os ganhos obtidos durante a universidade, permitindo que esses indivíduos possam oferecer melhores condições de vida para suas famílias.
Maria Vitória Sousa Rocha, 24, que sempre estudou em escola pública e ingressou na UnB em 2016, graduando-se em ciência política, admite que a Lei de Cotas teve crucial importância em sua autoestima e sentimento de pertencimento. “A Lei de Cotas preenche um buraco causado pela desigualdade e consegue equiparar o acesso de pessoas negras e brancas, e no meu caso, escolas privadas e públicas, ao ensino superior brasileiro”, diz a cientista política, que atualmente atua como analista de relações governamentais e se sente realizada profissional e financeiramente.
“A vivência universitária me fez pensar grande e não ter medo de ser incapaz no meio do caminho. Espero passar logo no mestrado, e em seguida no doutorado. Hoje, sei que posso ocupar espaços que antes eram distantes para mim”, diz ela, considerando que as principais dificuldades dos pós-egressos de universidade pública, é que além de origem pobre e precisar da auxílio para continuar estudando, enfrenta o problema da distância de casa e da família.
“Acho muito importante a conscientização sobre a importância das cotas. A sociedade em geral equivoca-se ao dizer que as cotas nas universidades são um tipo de racismo quando, na verdade, se refere a uma reparação histórica”, conclui.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que apenas 21% dos brasileiros, entre 25 e 34 anos, têm ensino superior completo e 90% dos brasileiros têm renda inferior a R$ 3,5 mil por mês. Para Leizer Pereira, CEO da Empodera, é importante mostrar os impactos da Lei de Cotas no Brasil que, segundo ele, “já transformou a vida de milhares de pessoas e é importante que esse processo abra caminhos para inclusão de mais jovens”.
Novas perspectivas norteiam debate
“Quando uma política bem-sucedida como a Lei de Cotas funciona, deve ser continuada” Leizer Pereira, CEO da Empodera(foto: ANDERSON GAMA)
O estudo sobre a Lei de Cotas realizado pela Box1824 e Empodera combinou metodologias qualitativas e quantitativas, focando na comparação entre dois grupos: os cotistas/beneficiários, pessoas que acessaram universidades federais utilizando as vagas reservadas pela lei 12.711; e os elegíveis, estudantes que cumpriam os requisitos da lei, mas ingressaram no ensino superior por outros caminhos.
Como abordagem quantitativa, foi realizada uma survey — obtenção de informações quantitativas sobre um determinado grupo de pessoas — a partir de um questionário on-line enviado exclusivamente para a rede da Empodera. Plataforma pioneira na construção de negócios inclusivos e preparação de carreira e conexão de jovens com organizações que valorizam a diversidade, a uma associação civil sem fins lucrativos reúne mais de 70 mil pessoas em todo o país.
De acordo com o vice-presidente e estrategista da Box1824, Gabriel Milanez, a primeira etapa da pesquisa teve o objetivo de mapear aspectos gerais ligados ao perfil destes dois grupos de interesse, e recebeu um total de 632 respostas. Já na etapa qualitativa da pesquisa, foram entrevistadas, individualmente, 20 pessoas, entre cotistas e elegíveis, a partir de um roteiro estruturado, perfazendo dezenas de horas com um aprofundamento denso em suas trajetórias antes, durante e depois da passagem pelo ensino superior.
“Saber que as cotas existem motiva os elegíveis a se dedicarem aos processos seletivos” Gabriel Milanez, vice-presidente e estrategista da Box1824(foto: Arquivo Pessoal)
“Hoje discute-se muito sobre inclusão em diversos setores da sociedade, inclusive em empresas privadas. É preciso lembrar que, atualmente, temos políticas públicas de inclusão muito bem-sucedidas no Brasil, como as cotas nas instituições federais de ensino, que podem servir de referência para muitas dessas iniciativas. O estudo mostra como elas provocam impactos muito consistentes na trajetória de seus beneficiários”, diz Milanez, considerando, ainda, que o trabalho pode contribuir com o amplo debate público que vem sendo feito sobre os 10 anos da Lei de Cotas. “Há muitas perspectivas diferentes sendo debatidas e escolhemos focar na escuta de beneficiários e egressos, buscando entender quais foram os impactos que a política pública trouxe para suas trajetórias acadêmicas, profissionais, familiares e pessoais”, completa.
Ainda segundo ele, por meio desse estudo foi constatado que as ações afirmativas transformam a realidade dos estudantes não só de forma individual, como também coletiva, antes mesmo da chegada à universidade. “Saber que as cotas existem motiva os elegíveis a se dedicarem mais aos processos seletivos. Dentro de uma instituição federal, os cotistas acessam novos conhecimentos, atividades extracurriculares e uma rede qualificada de contatos que fazem diferença na transição para o mercado de trabalho. Essa primeira geração de cotistas da lei federal está conquistando trabalhos e rendimentos inéditos dentro de suas famílias, tornando-se referências dentro dos seus círculos próximos e motivando outras pessoas a tentarem seguir caminhos semelhantes”, afirma.
Em síntese, prossegue Milanez, o estudo visa compreender, pelo contraste das informações e narrativas de pessoas beneficiárias e as elegíveis à Lei de Cotas, quais os principais impactos — objetivos e subjetivos — das ações afirmativas em suas trajetórias. Além disso, acentua, apresenta um panorama histórico das ações afirmativas no Brasil, apontando os marcos da luta política que culminou na criação da lei de cotas, mencionando evidências de outros trabalhos sobre o tema e apresentando propostas de futuro destinadas a diferentes setores, para que possam se engajar de forma prática e ativa no movimento de inclusão, seja na educação, no mercado de trabalho, na política, ou no cotidiano de forma geral.
Leizer Pereira, CEO da Empodera, pontua que, atualmente, mais da metade das vagas das universidades são preenchidas por pessoas da rede pública, de baixa renda e negros. “Duplicou o número de negro nas universidades. Quando uma política bem-sucedida como a da Lei de Cotas funciona, deve ser continuada”, diz, considerando haver espaços de melhoria, como alcançar os cursos de mestrado e doutorado, enfim, amadurecer propostas que ampliem os desafios.
Fonte: Correio Braziliense/Foto destaque: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press)