Guerra na Ucrânia faz renascer cidades-fantasma na Alemanha
Se você abrir o Google Maps para olhar as imagens de satélite do estado da Renânia do Norte-Vestfália, irá notar a existência de três grandes e pálidas áreas em contraste com as áreas verdes do mapa. São minas a céu aberto – Inden, Hambach e Garzweiler –, de onde a companhia de energia RWE extrai carvão mineral do tipo linhito.
Logo ao lado, há cidades e vilarejos que ficaram abandonados por meses, anos até – verdadeiras “cidades-fantasma”, fadadas à destruição para dar lugar à mineração. Mas o futuro desses lugares tornou-se incerto com a decisão do governo alemão de eliminar o carvão da matriz energética do país.
Duas dessas “cidades-fantasma” são Morschenich e Manheim, próximas à mina de Hambach, aberta em 1978 e com previsão de fechamento para 2030.
Chegando em Manheim, é possível ver casas com persianas abaixadas e janelas bloqueadas com tábuas. A rua de asfalto está danificada e os postes, quebrados. No meio do vilarejo há uma igreja católica, também bloqueada. Alguns imóveis ainda em boas condições estão cercados por arame farpado, e uma placa informa aos curiosos quem é o proprietário: RWE.
Dificilmente você cruzará com alguém em Manheim. Tecnicamente, não deveria haver ninguém ali – assim como não deveria haver ninguém em Morschenich, vilarejo vizinho, onde casas vazias exibem janelas seladas e são tomadas pelo mato.
“Não estamos reclamando de jeito nenhum”
Um observador desatento acharia que Morschenich também está abandonada. Algumas casas, porém, exibem etiquetas brancas de papel em suas portas – em uma delas há um nome ucraniano, em outra um árabe.
Denis e Julia são um casal ucraniano vivendo em um desses imóveis – os reais nomes deles foram ocultados para preservá-los. Eles relatam ter chegado a Morschenich em dezembro de 2022. A casa, outrora habitada por uma única família, é hoje uma espécie de mini-abrigo de refugiados em que vivem sírios e uma outra família ucraniana da região do Donbass.
“Não estamos reclamando de jeito nenhum. Temos luz elétrica, água, aquecimento, até Wi-Fi e internet móvel”, afirma Denis. “Conseguimos ligar para casa, na Ucrânia. Pessoas trabalhando para as autoridades locais vêm todas as semanas nos ajudar com a papelada. Recebemos ajuda do Estado com regularidade. A única coisa que não tivemos ainda são aulas do idioma.”
Eles dizem que não se incomodam com a falta de lojas, farmácias e médicos no entorno. Julia tem um carro, de placa ucraniana, que usa para buscar mantimentos no vilarejo mais próximo.
“No começo, quando chegamos, nada estava claro para nós. Depois foi que alguém nos explicou que lugar é esse. Mas em casa, na Ucrânia, estivemos sob fogo cruzado por três meses, e aqui é tranquilo.”
O casal aponta para a floresta que começa do outro lado de um descampado. “Ativistas do clima vivem ali”, informa Denis. “Fizeram casas nas árvores. A gente vê eles às vezes, mas eles não incomodam.” A polícia, segundo ele, viria regularmente para verificar se está tudo em ordem.
Há várias famílias ucranianas vivendo em Morschenich agora. Denis e Julia as veem quando saem para passear, ou quando há visita das autoridades locais.
“À primeira vista, parece entediante aqui, mas nós saímos para colher frutas silvestres”, diz ela. “Às vezes vamos à cidade, mas lá é tão barulhento que ficamos felizes quando voltamos para o campo”, emenda ele.
Os dois dizem não saber por quanto tempo ficarão ali. “Parece que não vão demolir o vilarejo. A prefeitura nos enviou para cá, mas antes estávamos em um campo de refugiados em Bochum [cidade próxima dali], então vamos ficar aqui até que nos levem a outro lugar”, diz Julia.
De fato, os planos mais recentes, confirmados pela RWE à DW, dão conta de que Morschenich não sumirá mais do mapa – a Alemanha se comprometeu a eliminar completamente as usinas de energia a carvão até 2038 como parte dos esforços para reduzir as emissões de carbono.
“A pedido das autoridades locais, disponibilizamos as casas e apartamentos em questão, que havíamos comprado anteriormente de famílias realocadas, para pessoas que precisavam urgentemente de um teto sobre suas cabeças”, disse o porta-voz da RWE.
Uma escola virou abrigo de refugiados
Não muito longe dali, perto de outra mina a céu aberto chamada Garzweiler II, estão os povoados de Kuckum e Keyenberg. Os antigos moradores também foram indenizados e realocados. As duas localidades estão destinadas a desaparecer, em breve.
Ao lado está Lützerath, vilarejo que ficou famoso no início do ano devido a uma série de protestos de ativistas do clima e que foi visitado pela jovem sueca Greta Thunberg. O local também deve ir abaixo este ano, e todas as estradas que levam até Lützerath estão bloqueadas.
Em Keyenberg ainda dá para chegar de carro. À primeira vista, parece igual às outras cidadezinhas abandonadas: as mesmas ruas estreitas com casas bem construídas, mas vazias, circundando uma igreja católica.
Alguns metros à frente da estrada fica a escola, de onde várias pessoas emergem de repente carregando cadeiras. O mobiliário é posto no pátio. Faz calor.
Um homem que diz ser da Síria informa que o grupo vive ali, e some logo depois – não está claro se a informação, de fato, procede. Ninguém quer falar; todos retornam ao prédio.
Ainda há transporte público em Keyenberg – uma placa num ponto de ônibus próximo à escola informa sobre os horários. Em frente à igreja, uma padaria também lista os horários de funcionamento – algumas horas em alguns dias da semana. Não há mais lojas ou farmácias, quase todo o comércio está vazio, mas há alguns carros estacionados pelas ruas.
“Ainda há moradores em Keyenberg, mas cerca de 80% se mudaram depois de receber compensação. Cerca de 15-20% ainda estão aqui”, afirma à DW Irina Becker, conselheira na cidade vizinha de Bochum, do partido conservador União Democrata Cristã (CDU), e membro do comitê local de integração.
“Também há refugiados vivendo aqui atualmente”, continua Becker. “A antiga escola foi adaptada para eles. Várias casas também servem de alojamento – algumas são usadas individualmente, outras em formato de alojamento compartilhado. Têm luz elétrica, água e calefação. Oferecemos cursos de alemão e de integração aos refugiados, e as crianças estão indo para a pré-escola.”
Quem está enviando refugiados para os vilarejos abandonados?
Há uma família ucraniana com uma criança em Keyenberg. Eles não querem se identificar, mas explicam que estavam “há muito tempo na Polônia”. Descobriram pelas redes sociais que poderiam ir para Bochum para, de lá, serem enviados a uma cidade grande como Düsseldorf ou Colônia. Mas, no fim das contas, as autoridades estaduais os teriam enviado primeiro para a pequena cidade de Erkelenz, e depois para a minúscula Keyenberg – esta última, em seu auge, não chegou a ter mais de mil habitantes.
Refugiados são distribuídos de acordo com determinadas cotas entre os 16 estados da Alemanha e milhares de municípios, enquanto a decisão sobre quem viverá em qual casa é tomada de acordo com a necessidade.
Até a publicação deste texto, o governo estadual da Renânia do Norte-Vestfália não havia respondido às perguntas da DW sobre o envio de refugiados a “vilarejos-fantasma”. Autoridades municipais em Erkelenz e Merzenich também foram procuradas para comentar o caso – sem sucesso.
A família de refugiados ucranianos em Keyenberg diz gostar dali. Eles estão sozinhos no imóvel que habitam, por enquanto, mas devem ganhar a companhia de outra família ucraniana em breve – algo que os deixou em alerta a princípio.
“Mas é melhor aqui do que dormir numa maca dentro de um ginásio em um lugar qualquer”, afirmam, aludindo a conhecidos que ainda vivem nessas condições.
Enquanto houver guerra na Ucrânia, eles não querem voltar, e podem ficar na Alemanha mesmo que o conflito acabe.
“Vamos ver. Por enquanto está tudo bem”, dizem. “A vila não será demolida. Talvez fiquemos aqui, se deixarem.”
Fonte: Deutsche Welle – Foto: Daniela Natalie Posdnjakov/DW