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O que é o orçamento secreto, julgado pelo Supremo

Por Bruno Lupion

Deutsche Welle – O Supremo Tribunal Federal retomou nesta quarta-feira (14/12) o julgamento de ações que questionam a constitucionalidade do orçamento secreto, um mecanismo pouco transparente de transferência de recursos públicos para atender a interesses de parlamentares criado em 2020, no segundo ano da gestão Jair Bolsonaro (PL).

A relatora, ministra Rosa Weber, votou para considerar o mecanismo inconstitucional – os demais ministros ainda não votaram.

As ações foram propostas por quatro partidos – Cidadania, PSB, PSOL e PV – e questionam a falta de transparência sobre autoria, valor e destinação das emendas de relator, que compõem o orçamento secreto, além da falta de critérios técnicos para alocação das verbas e a escolha arbitrária dos parlamentares beneficiados.

Os processos tramitam sob a relatoria da ministra Rosa Weber, atual presidente o Supremo. É possível que o julgamento seja concluído apenas no próximo ano, caso algum dos ministros da corte decida pedir vista.

A ministra já havia concedido em novembro de 2021 uma decisão liminar que suspendeu o orçamento secreto, mas no mês seguinte liberou o mecanismo após o Congresso ter alterado as normas sobre sua aplicação e passar a exigir a indicação do nome da pessoa que havia solicitado a emenda, como um deputado ou um senador.

Porém, essa regra deixou uma brecha para manter em segredo o parlamentar interessado. Ela permitiu que um “usuário externo”, ou seja, qualquer pessoa, fosse incluída como a interessada na emenda, escondendo o padrinho político.

Campanha e governo de transição

O orçamento secreto foi um dos temas explorados na campanha eleitoral deste ano por opositores de Bolsonaro. Simone Tebet, candidata derrotada do MDB a presidente, que apoiou no segundo turno a campanha vitoriosa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), disse que o orçamento secreto poderia ser o “maior esquema de corrupção do planeta Terra”.

Lula também criticou o mecanismo e prometeu na campanha acabar com orçamento secreto. Atualmente, o presidente eleito vem sinalizando que apoiaria uma solução intermediária, que mantenha as emendas de relator desde que elas sejam transparentes e destinem verbas para programas alinhados às prioridades estratégicas do governo.

A nova posição do petista contribui para que ele construa um entendimento com os atuais presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que são grandes beneficiários das emendas de relator e pretendem se reeleger para o comando das duas Casas.

Por sua vez, com Lira e Pacheco contemplados, aumenta a chance de Lula conseguir a aprovação pelo Congresso, ainda neste ano, da PEC da Transição, que amplia o limite de gastos nos dois primeiros anos do novo governo.

Na terça-feira (13/12), o relator do Orçamento, senador Marcelo Castro (MDB-PI), afirmou que Câmara e Senado deverão apresentar uma proposta conjunta como alternativa para as emendas de relator, de acordo com a Agência Senado. 

Segundo essa proposta, todas essas emendas seriam transparentes e vinculadas ao nome do congressista responsável, e 80% das verbas seriam divididas de forma proporcional às bancadas de cada partido – dos 20% restantes, a divisão seria a seguinte: 7,5% ficariam para a Mesa do Senado Federal; 7,5% para a Mesa da Câmara e 5% para a Comissão Mista de Orçamento (CMO).

Como funciona hoje

O orçamento secreto é uma maneira de o governo e o comando da Câmara e do Senado distribuírem verbas públicas para atender interesses dos deputados e senadores que os apoiam.

As autorizações para destinar essas verbas são incluídas no Orçamento depois de ele já ter sido aprovado, por meio das emendas parlamentares.

Há quatro tipos de emendas: as individuais (indicadas por um congressista específico), de bancada (atendem às bancadas de cada unidade da Federação), de comissão (solicitadas por esses órgãos colegiados do Congresso) e de relator.

As usadas no orçamento secreto são as emendas de relator, sob o código RP9. Elas são incluídas pelo relator-geral do Orçamento, um parlamentar escolhido a cada ano para ser o responsável pela redação final do texto.

As emendas de relator costumavam ser usadas apenas para fazer pequenas correções no Orçamento. Em 2020, uma nova regra mudou isso.

Essas emendas passaram a destinar bilhões de reais para obras, compras de veículos e diversos outros gastos, sem transparência e às vezes ligados a indícios de corrupção.

A nova regra foi criada para assegurar apoio dos parlamentares do Centrão a Bolsonaro. O orçamento secreto foi revelado pelo jornal O Estado de S.Paulo em maio de 2021.

Por que ele se chama secreto

A mídia batizou o mecanismo dessa forma porque é impossível identificar em alguns casos qual deputado ou senador é o responsável pela criação da emenda. No começo, também era muito difícil identificar o destino do dinheiro.

Quando ele veio à tona, funcionava assim: o relator-geral incluía no Orçamento uma emenda genérica destinando verbas extras a um órgão do governo – para o Ministério do Desenvolvimento Regional, por exemplo.

Em seguida, os parlamentares que tinham acordos com o governo ou com o comando da Câmara e do Senado enviavam à pasta ofícios – não disponíveis ao público – pedindo a transferência de verbas da sua “quota” para, por exemplo, asfaltar vias de trânsito ou comprar tratores. O dinheiro era então repassado.

As primeiras reportagens sobre o orçamento secreto identificaram suspeitas de compras superfaturadas de máquinas e equipamentos agrícolas com essas verbas.

Apesar de o Congresso ter alterado as regras sobre as emendas no final de 2021 para atender ao Supremo, a figura do “usuário externo” manteve a falta de transparência do mecanismo. No primeiro semestre deste ano, essa estratégia respondia por um terço do total das emendas de relator negociadas, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo.

Em 4 de outubro, foram realizadas as primeiras prisões em uma operação da Polícia Federal (PF) sobre o orçamento secreto. O esquema, revelado pela revista Piauí, envolve o registro de consultas e procedimentos médicos falsos no Sistema Único de Saúde (SUS) para justificar o recebimento de verbas do orçamento secreto em pequenas cidades no Maranhão e no Piauí.

Uma das pessoas presas foi Roberto Rodrigues de Lima, ele mesmo um “usuário externo”. Em seu nome, havia R$ 69 milhões em emendas do orçamento secreto – sem que estivesse claro qual era o parlamentar interessado.

A PF já havia realizado outras operações para apurar desvios ligados ao orçamento secreto em verbas destinadas para educação e saúde em Rio Largo (AL) e para obras de pavimentação em cidades do Maranhão. Há outras investigações em andamento.

Qual é o envolvimento de Bolsonaro no orçamento secreto

Bolsonaro foi eleito em 2018 com um discurso de que não repetiria as práticas adotadas por presidentes anteriores para construir e manter coalizões governamentais no Congresso, o que ele chamava de “velha política”.

Ao assumir o poder, porém, ele percebeu que seria difícil governar só com o respaldo de seus eleitores, sem negociar apoios de deputados e senadores. Em 2019, ele teve uma taxa de sucesso legislativo no Congresso de 31%, a menor desde a redemocratização, segundo levantamento do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB). Essa taxa mede o êxito do governo na transformação dos projetos de sua autoria em norma.

Para reverter esse cenário, Bolsonaro começou a abrir espaço no governo a políticos do Centrão e deu aval à criação da nova regra para as emendas de relator, que resultou no orçamento secreto.

Ao fazer isso, Bolsonaro garantiu apoio do Congresso ao seu governo e proteção contra um eventual processo de impeachment. Por outro lado, abriu mão do poder de decidir o destino de uma parte relevante das verbas públicas disponíveis.

Os maiores beneficiários das emendas de relator eram integrantes da base de apoio a Bolsonaro no Congresso. Esses parlamentares, por sua vez, capitalizaram politicamente a destinação dessas verbas em suas campanhas eleitorais e no apoio aos seus candidatos, como ao próprio Bolsonaro.

Após perder as eleições, testemunhar a debandada de ex-aliados do Centrão e enfrentar dificuldade para fechar as contas do governo, Bolsonaro encaminhou em novembro ao Congresso um projeto de lei para remanejar os recursos das emendas de relator para despesas obrigatórias previstas no Orçamento deste ano.

A Transparência Internacional Brasil, organização que atua para defender o combate à corrupção, considera que o orçamento secreto é o maior processo de “institucionalização da corrupção” de que se tem registro no Brasil.

“O que a gente chama de institucionalização da corrupção é uma forma de dar um verniz legal, institucional, a uma prática absolutamente corrupta na sua essência, que é a apropriação do erário público para interesses privados, sejam eles políticos, de reprodução de poder, ou pecuniários mesmo, interesses materiais”, afirmou o diretor executivo da organização, Bruno Brandão, à BBC Brasil.

Qual é o valor do orçamento secreto

Em 2020, primeiro ano do orçamento secreto, as emendas de relator tiveram R$ 13,1 bilhões em valores aprovados. No ano seguinte, a cifra foi para R$ 17,14 bilhões. Neste ano, são R$ 16 bilhões, segundo o OLB. Nesses três anos, a soma de valores autorizados chega a R$ 46,2 bilhões.

Desde o início do orçamento secreto, seu montante superou em muito o destinado a emendas individuais e de bancada, que eram as mais usadas até então para atender pedidos dos deputados e senadores.

Em 2022, o valor aprovado para as emendas de relator foi 50% maior do que o das emendas individuais, e o triplo do das emendas de bancada.

Com tanto dinheiro a mais indo para o orçamento secreto, o volume de recursos disponível para o governo definir prioridades e decidir livremente onde gastar diminuiu. Para manter esse mecanismo, o governo teve de cortar verbas de outras políticas públicas, como da Farmácia Popular.

Em 2019, as emendas parlamentares representavam 5,4% do gasto com despesas discricionárias do governo. Neste ano, elas são 24% do valor aprovado para essas despesas.

Na prática, isso significa que cada vez mais são os deputados e senadores que decidem para onde irão as verbas, com menos transparência e coordenação de prioridades.

Fonte: DW Brasil / Imagem:  Adriano Machado/REUTERS

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