A reforma administrativa do governo Jair Bolsonaro afrouxa a regra para ocupação de cargos de confiança e fará com que municípios, estados e União tenham mais de um milhão de postos para livre nomeação —ao menos 207 mil a mais do que hoje.
O levantamento faz parte de nota técnica produzida pela Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado, que questiona a flexibilização e afirma que a medida abre margem para indicações políticas.
O relator da proposta, deputado Arthur Maia (DEM-BA), se posicionou nesta terça-feira (22) contra o afrouxamento da norma e afirmou que pretende mudar o texto do governo para manter a regra vigente hoje.
“Essa questão que está sendo colocada na proposta de trazer para os cargos de chefia a condição de livre nomeação, eu me associo a todos aqueles que entendem que esse ponto deve ser modificado”, disse. “Não há razão para favorecer o aumento da intromissão indevida da política na administração pública”.
A proposta enviada pelo governo retira da Constituição a norma que reserva a servidores efetivos a nomeação para funções de confiança e estabelece que cargos em comissão serão preenchidos por servidores em percentuais mínimos definidos em lei —hoje, o patamar é de ao menos 50%.
O texto da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) se limita a dizer que esses postos “serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas”, sem menção à necessidade de ocupação por servidores.
Na prática, a proposta propõe a eliminação das restrições constitucionais existentes hoje e permite a ocupação de cargos em comissão e funções de confiança, sem limites, por pessoas que não têm vínculo com a administração pública.
Levantamento do consultor de Orçamentos do Senado Vinicius Amaral mostra que o total de cargos e funções desse tipo existentes hoje pode ultrapassar 1 milhão. São 175 mil na União, ao menos 180 mil nos estados e pelo menos 559 mil nos municípios.
A soma desses postos totaliza 915 mil, mas os dados dos governos regionais não incluem os números das assembleias legislativas e câmaras de vereadores, o que levaria o total a mais de um milhão. Desse montante, ao menos 207 mil são hoje ocupados por servidores efetivos.
Segundo dados de 2019 do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os governos municipal, estadual e federal reúnem 10,9 milhões de vínculos, entre servidores e postos comissionados.
A nota afirma que após eventual aprovação da reforma, os servidores ocupantes desses postos poderão ser gradativamente substituídos por pessoas sem vinculação com a administração pública.
“Tanto a doutrina jurídica quanto estudos econômicos associam a ocupação de cargos em comissão por pessoas sem vínculo com a ocorrência de corrupção. A PEC, ao ampliar as possibilidades de ocupação desses cargos e das funções de confiança por pessoas sem vínculo, tende, portanto, a fomentar a prática da corrupção na administração pública brasileira”, diz o documento.
O Ministério da Economia informou que a PEC não fala em indicações políticas em nenhum momento. Segundo a pasta, o texto prevê que mesmo para os cargos de liderança e assessoramento deverão existir critérios mínimos de acesso e que a ocupação observará regras comuns a todos os entes.
A nota do ministério diz ainda que essas normas serão definidas por lei, a ser aprovada pelo Congresso, que poderá prever critérios mais rígidos do que os atuais.
Nos bastidores, técnicos da pasta que participaram da elaboração da proposta afirmam que a ideia não é afrouxar as regras. Um membro do ministério reconhece que o resultado dependerá do que os parlamentares aprovarem ao fim do processo.
O consultor do Senado vê com preocupação esse plano, que pode deixar um vácuo jurídico sobre o tema.
“Tudo depende de quando essa lei será aprovada. A reforma administrativa de 1998 também previu leis complementares que até hoje não existem. Essa regra pode ficar simplesmente em aberto por tempo indeterminado. Enquanto perdurar essa situação, o governo terá total liberdade para realizar essas nomeações”, afirmou.
Um exemplo similar foi a inclusão na Constituição em 1998 da regra que permite a demissão de servidores públicos por desempenho insatisfatório. Para ser colocada em prática, a medida depende de regulamentação pelos congressistas por meio de uma lei complementar.
Mais de 20 anos depois, a lei nunca foi aprovada pelo Legislativo e o governo não pode fazer demissões de servidores por esse mecanismo, apesar da previsão na Constituição.
O presidente da Fonacate (Fórum Nacional de Carreiras Típicas de Estado), Rudinei Marques, afirma que a flexibilização para nomeações é um dos mecanismos mais perigosos da PEC. Para ele, o governo é contraditório ao fazer discursos sobre meritocracia enquanto propõe uma mudança que permite colocar aliados políticos dentro da máquina pública.
“Não tem sentido o governo dizer que vai mudar agora a Constituição para depois encaminhar um projeto de lei. Não precisaria ter mexido nisso se não quisesse promover um aparelhamento sem limite”, disse.
O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), membro da comissão especial que debate a PEC na Câmara, afirma que dispensar servidores concursados para adotar cargos comissionados em funções técnicas “é uma imoralidade”.
“Uma coisa é cargo comissionado para função de chefia, onde o indicado orienta as políticas públicas escolhidas pela população na urna. Outra coisa é dar brecha para que toda a administração pública torne-se um cabidão de empregos”, disse. “É o trem da alegria das indicações políticas.”
O deputado Gervásio Maia (PSB-PB) considera esse um dos pontos mais delicados e graves da PEC. “O servidor de carreira não só tem o conhecimento, porque ele passou no concurso público e estudou muito para chegar até lá. Na hora em que você retira o servidor de carreira e abre para indicação política, você abre espaço para colocar pessoas que não tenham conhecimento dentro de determinado órgão.”
O deputado federal Professor Israel Batista (PV-DF), presidente da Servir Brasil (Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público), critica a medida. “Isso não é um cabide de emprego, é um guarda-roupas inteiro”, afirmou.
“Atualmente, existe uma regulação para a concessão dos cargos em comissão. Com a PEC do jeito que está não existirá tal regulamentação de modo que a administração pública corre um sério risco de se tornar um enorme espaço de apadrinhados políticos.”
Em 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) conseguiu aprovar uma reforma administrativa para modernizar a estrutura do Estado. Entre as mudanças, foram incluídas na Constituição restrições ao uso dessas vagas de livre nomeação.
Por isso, atualmente apenas servidores públicos efetivos, aqueles que passaram por concursos públicos, podem assumir funções de confiança na administração pública. Em troca de um adicional no salário, eles recebem mais responsabilidades.
Para os cargos comissionados, a regra é dividir proporcionalmente as posições entre funcionários de carreira e indicações fora do serviço público. Esses postos têm atribuições semelhantes às funções de confiança, ou seja, geralmente envolvem o comando de uma equipe.
Fonte: Folha de São Paulo