A decisão do presidente Jair Bolsonaro (PL) de sancionar a prorrogação da desoneração da folha de pagamento de 17 setores sem adotar medidas tributárias para compensar a perda de R$ 9,1 bilhões na arrecadação em 2022 acendeu um alerta no TCU (Tribunal de Contas da União).
A recomendação do Ministério da Economia era manter a sobretaxa do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) sobre operações de crédito e a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) mais elevada sobre bancos.
A pasta, porém, foi ignorada pelo Palácio do Planalto, e ambas as cobranças expiraram no fim de 2021.
No sábado (1º), a Secretaria-Geral da Presidência da República afirmou que a compensação não seria necessária porque “se trata de prorrogação de benefício fiscal já existente” e porque a medida “foi considerada no Relatório de Estimativa de Receita do Projeto de Lei Orçamentária de 2022”.
O órgão disse ainda que a medida se dava “nos termos da orientação emitida pelo Tribunal de Contas da União”.
Integrantes do tribunal, no entanto, avaliam que a orientação do TCU não abre qualquer brecha para conceder benefícios sem que a renúncia esteja prevista no Orçamento ou haja compensação, ainda que se trate de uma prorrogação de política já existente.
Além disso, ao contrário do afirmado pelo governo, a renúncia não foi considerada no parecer de receitas do Orçamento de 2022, segundo o próprio relator da matéria no Congresso, senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR). “Essa nota [da Secretaria-Geral] está errada”, disse.
De acordo com o senador, ele não poderia incorporar a nova previsão de receitas porque a lei que prorroga a desoneração ainda não havia sido sancionada por Bolsonaro. “Não podemos estimar a receita com base em ‘eu acho’”, afirmou.
Oriovisto também disse à Folha que houve uma articulação para tentar mudar as receitas no Orçamento de 2022 após o texto já ter sido aprovado por deputados e senadores. O objetivo seria incluir a renúncia com a desoneração para regularizar a situação.
“Começaram com uma história tola de que eu poderia fazer um requerimento pedindo para alterar a receita, o relator-geral do Orçamento, deputado Hugo Leal, concordaria, o presidente da Câmara concordaria, o presidente do Senado concordaria, a Rose de Freitas, presidente da CMO [Comissão Mista de Orçamento], concordaria, e nós mudaríamos”, afirmou.
“Ora, isso é ridículo. Se meia dúzia de pessoas podem alterar a lei que o Congresso inteiro aprovou, então vamos fechar o Congresso e contratar só esses seis”, disse o senador.
Ele contou ter recebido um telefonema da senadora Rose de Freitas (MDB-ES) com a proposta de acordo. Segundo ele, outras pessoas estariam envolvidas nas discussões, mas ele preferiu não citar outros nomes.
“A lei orçamentária é aprovada por 513 deputados e 81 senadores. Como é que meia dúzia depois… Eu vou fazer um requerimento e os outros vão mudar isso sem passar pelo Congresso?”
Procurada, a senadora não respondeu até a publicação desta reportagem.
A prorrogação da desoneração da folha de pagamento foi sancionada nas últimas horas do dia 31 de dezembro de 2021 —uma forma de tentar fortalecer o argumento de que se trata apenas de uma prorrogação, não um novo benefício.
O Ministério da Economia, que discordava dessa interpretação, apontou as medidas que poderiam ser adotadas no momento da sanção da desoneração da folha para servir de compensação.
Na quarta-feira (29), o próprio secretário do Tesouro Nacional, Paulo Valle, confirmou a necessidade de haver compensação para a prorrogação da desoneração da folha.
“Ainda tem de ser definido, mas certamente terá de ter compensação, com receitas ou despesas. Haverá uma discussão ainda nesse sentido”, afirmou na ocasião.
Na sexta (31), a sanção foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União sem as medidas do IOF ou da CSLL, o que surpreendeu técnicos do governo que vinham discutindo as compensações.
A própria AGU (Advocacia-Geral da União) apontou a necessidade de veto integral da desoneração, ou sanção acompanhada das medidas indicadas pela Economia, segundo fontes ouvidas pela reportagem.
O relator-geral do Orçamento, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), confirmou à Folha que o impacto da desoneração nas receitas não foi contabilizado na tramitação da peça no Congresso Nacional.
“Não foi previsto, por ausência de manifestação do Ministério da Economia no momento da votação do Relatório da Receita”, disse.
Leal chegou a encaminhar à presidente da CMO, em 28 de dezembro, um ofício alertando sobre a ausência de revisão na previsão de renúncias tributárias.
“Solicito que, junto com o Autógrafo da Lei Orçamentária de 2022, seja encaminhado ao Poder Executivo o presente expediente, de forma a possibilitar os ajustes necessários na receita”, diz o documento.
O deputado, porém, afirmou que a justificativa da Secretaria-Geral está alinhada à interpretação de que se trata de uma prorrogação. “Foi um entendimento e o motivo pelo qual [a lei] foi sancionada dia 31 de dezembro, para ser tratado como prorrogação e não como novo diferimento fiscal”, disse.
De acordo com pessoas que acompanham as discussões no TCU, a tendência na corte, porém, é que a prorrogação da desoneração seja entendida como uma nova concessão de benefício tributário.
Na consulta citada pela Secretaria-Geral, o TCU esclareceu que os requisitos da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) para a concessão de benefícios tributários serão atendidos quando ao menos uma das seguintes condições estiver preenchida: a renúncia for considerada na lei orçamentária ou houver medida para compensar a perda de receitas.
“A demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da Lei Orçamentária Anual, na forma do art. 12 da Lei Complementar 101/2000, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da Lei de Diretrizes Orçamentárias, torna não obrigatórias a previsão e a implementação de medidas de compensação”, disse o TCU em acórdão de novembro de 2021.
No caso da desoneração, nenhuma das condições foi plenamente atendida.
De acordo com integrantes da corte ouvidos pela reportagem, o caso pode se tornar alvo de uma representação específica, ou ser analisado no âmbito das contas de governo de 2021, sob relatoria do ministro Aroldo Cedraz.
Procurado, o Ministério da Economia afirmou que as perguntas sobre a desoneração deveriam ser encaminhadas ao Palácio do Planalto.
A Folha questionou a Secretaria-Geral, a Casa Civil e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Os setores alcançados pela desoneração são os de calçados, call center, comunicação, confecção e vestuário, construção civil, empresas de construção e obras de infraestrutura, couro, fabricação de veículos e carrocerias, máquinas e equipamentos, proteína animal, têxtil, tecnologia da informação, tecnologia de comunicação, projeto de circuitos integrados, transporte metroferroviário de passageiros, transporte rodoviário coletivo e transporte rodoviário de cargas.
Fonte: Folha de São Paulo