Citando tortura, ONU tenta frear onda ultraconservadora liderada por Brasil
Todos os seres humanos têm a liberdade de determinar sua identidade, inclusive no que se refere ao gênero e sua expressão. E cabe ao estado garantir esse direito. Qualquer exigência de que pessoas cumpram supostos papéis na sociedade e a construção binária de gênero podem gerar até mesmo uma situação de tortura para quem não esteja adequado a tais normas.
A constatação faz parte de um relatório que será apresentado hoje na ONU e está sendo considerado como histórico no movimento de direitos humanos.
O documento – batizado de “Lei da Inclusão” – está sendo interpretado no meio diplomático como uma tentativa da ONU de colocar uma linha vermelha sobre o avanço da extrema-direita e a ofensiva ultraconservadora, que tenta redefinir conceitos de direitos humanos. Nos últimos dois anos, Brasil, Hungria, Polônia e o ex-presidente Donald Trump lideraram esses esforços.
Desde que assumiu o governo, o presidente Jair Bolsonaro liderou uma transformação na posição internacional do Brasil em termos de costumes, valores e direitos humanos. Uma das primeiras decisões foi a de declarar em fóruns internacionais o veto a qualquer referência ao termo gênero.
Em debates na ONU, OMS e outras instâncias, o governo chegou a tomar a palavra para indicar que só aceitaria referências à “igualdade entre homem e mulher” nos textos oficiais e resoluções.
Enquanto isso, o governo brasileiro assumiu a liderança de uma aliança entre ultraconservadores como Hungria e Arábia Saudita, com o objetivo de influenciar em uma redefinição dos conceitos de gênero, direitos sexuais e reprodutivos na ONU.
A ofensiva deixou dezenas de especialistas e governos preocupados e, numa tentativa de restabelecer diretrizes, o Especialista Independente para Orientação Sexual e Identidade de Gênero, Victor Madrigal-Borloz, apresenta um texto para dar uma resposta à visão brasileira e dos demais aliados.
O documento, portanto, estipula que “a noção de que existe uma norma de gênero, da qual as identidades e expressões variam ou partem, é baseada em uma série de preconceitos que devem ser desafiados para que toda a humanidade possa usufruir dos direitos humanos”.
“Entre esses conceitos errôneos está a ideia de que é um objetivo legítimo da sociedade que as pessoas adotem papéis, formas de expressão e comportamentos que são considerados direitos ou encargos de acordo com seu sexo atribuído à nascença”, declara.
“Somente reconhecendo os estereótipos, assimetrias de poder, desigualdade e violência fundamental que estão na base deste sistema, o Estado cumpre sua obrigação de enfrentar a violência e a discriminação que alimenta, com seu impacto devastador sobre as mulheres e meninas em todos os cantos do mundo, incluindo lésbicas, bissexuais e mulheres trans”, completa.
Para o relatório, construções binárias de gênero, e as expectativas de gênero resultantes dessa realidade, são inadequadas para a experiência de vida de parcelas da comunidade. “Essas violações muitas vezes implicam em tortura e maus-tratos”, alerta.
Cabe ao estado ainda prevenir, processar e punir a violência e a discriminação com base na orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero. Também cabe ao estado “reconhecer a liberdade de cada ser humano para determinar os limites de sua existência, incluindo sua identidade e expressão de gênero”.
Para o relator, o reconhecimento legal da identidade de gênero e a proteção contra a violência e a discriminação a ela relacionada, à expressão de gênero e à orientação sexual, estão ligados à autonomia corporal. “A segurança das pessoas LGBT e intersex diz respeito ao seu direito de ter sua integridade física e mental respeitada, incluindo a liberdade de interferência indevida na integridade corporal”, destaca.
De acordo com o documento, a proteção contra violência e discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero também depende substancialmente da implementação de uma educação abrangente sobre gênero e sexualidade.
Já o governo brasileiro tem atuado para vetar resoluções que falem do direito à educação sexual, sob a alegação de que tal proposta tem como objetivo inserir o debate sobre o aborto.
Gênero e sexo não se substituem
O documento ainda desfaz uma das bandeiras da diplomacia brasileira que tem sido a de explicar que entende apenas a existência de dois sexos – homem e mulher – e que tais referências em resoluções e acordos internacionais deve levar isso em conta.
“O gênero descreve uma construção sociocultural que atribui certos papéis, comportamentos, formas de expressão, atividades e atributos determinados como apropriados de acordo com o significado dado às características biológicas do sexo. Sob esta definição, gênero e sexo não se substituem”, aponta.
Entre as recomendações apresentadas ao governo, o especialista independente pede que autoridades reconheçam o valor das abordagens baseadas no gênero e defendam os direitos relacionados ao gênero e à sexualidade como universais e inalienáveis, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados com todos os outros direitos.
Para isso, ele recomenda que os Estados adotem, em sua legislação, políticas públicas e sistemas de acesso à justiça, um entendimento de gênero e identidade e expressão de gênero que esteja em conformidade com o direito internacional.
Relatório é visto como “ferramenta” para ativistas no Brasil
O documento foi amplamente aplaudido por ativistas e especialistas no Brasil. Bruna Benevides, autora da pesquisa sobre violência contra pessoas trans através da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), considera o informe como uma “ferramenta para intensificar a atuação de defensores de direitos humanos e instituições”.
Sua expectativa é de que o documento sirva de referência para o Judiciário, onde os principais avanços estariam ocorrendo. Para ela, existe hoje uma tentativa de criar um ambiente favorável à violência e violações contra essa população. “O Brasil é país que mais assassina pessoas trans no mundo”, disse.
Para a coordenadora do Sexuality Policy Watch, Sonia Corrêa, o relatório tem um “enorme significado”. “É uma resposta institucional necessária do Sistema Internacional de Direitos Humanos as campanhas antigênero que se assistem no mundo, sobretudo na Europa e América Latina”, disse.
“Entre outras razões, por que, como sabemos, o repúdio ao “gênero” irrompeu de forma pública, em 1995, no contexto da ONU, nos debates preparatórios para a IV Conferência Mundial das Mulheres de Beijing (1995) e, de fato, ficou restrito a esse espaço por muito anos, antes de se converter em pauta teológica e mais tarde campanhas de mobilização social”, explicou.
“Mas, sobretudo por que o informe explicita, de maneira precisa, porque esse repúdio e as campanhas que dele decorrem são injustificáveis”, disse.
Segundo ela, o informe argumenta que a concepcão — religiosa, conservadora e do sentido comum — de que existe uma norma de gênero natural e fixa da qual certas identidades e expressões seriam desviantes deve ser desafiada para que toda a humanidade possa usufruir dos direitos humanos.
“Não é objetivo legítimo das sociedades impor as pessoas papéis, formas de expressão e comportamentos de acordo com o sexo atribuído no nascimento, isso porque esse objetivo é, de fato, impregnado de estereótipos, assimetrias de poder, desigualdade e violência, sendo, portanto, incompatível com os fundamentos dos direitos humanos”, disse.
Em sua análise, a teoria de gênero oferece uma moldura sólida para lidar com assimetrias de poder derivadas de como o sexo é construído e opera nas sociedades sendo, assim um marco legítimo para guiar a aplicação das normas de direitos humanos. “Além disso é necessário aplicar essa moldura numa perspectiva interseccional pois no mundo real gênero, identidade de gênero, orientação sexual e raça se sobrepõe, produzindo uma espiral de desigualdades e violações de direitos humanos inclusive do direito a vida, como demonstram os números de assassinatos das mulheres trans negras no Brasil”, disse.
Educação no centro do debate
Especialistas brasileiros também apontam para a importância do documento ao tratar da questão de educação e dos jovens.
Na avaliação de Deborah Duprat, advogada e subprocuradora-geral da República aposentada, um dos destaques do informe é a “lembrança da centralidade da educação para romper os estereótipos de gênero e, com isso, o regime de dominação a ele associado”.
Para Marco Aurélio Maximo Prado, professor do Departamento de Psicologia e coordenador do núcleo de direitos humanos e cidadania LGBT+ da UFMG, o relatório “é importante para explicitar acordos normativos e proposições políticas as quais em cada país podem indicar a garantia de crianças e jovens ao direito à livre expressão de gênero que em cada localidade institui direitos ao cuidado à saúde integral, a autonomia, à inclusão educacional e ao livre exercício de suas identidades”.
“Neste sentido, a manifestação de organismos internacionais é fundamental para sublinhar marcos institucionais e políticos que permitam identificar em cada país recursos institucionais, politicas sociais e investimentos para a garantia de direitos à identidade de gênero, bem como o caso de países, como o Brasil da atualidade, que buscam implementar políticas excludentes e impeditivas da livre expressão a orientação sexual e a identidade de gênero, especialmente das crianças e jovens”, disse.
“Temos observado no país, a tentativa por parte de políticos, grupos religiosos e governos em propor ações legislativas e programas sociais para impedir o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero principalmente na infância”, alertou. “Toda tentativa de barrar o reconhecimento social, político e jurídico da diversidade de crianças e jovens é um ato de exclusão de uma ampla parcela da população e precisa ser denunciada”, disse.
“É urgente instituir mecanismos de denúncia e responsabilização de atos governamentais e legislativos que limitem o reconhecimento da diversidade pois esta exclusão e impedimento da livre expressão da identidade de gênero/sexual marginaliza uma enorme parcela da infância e da adolescência”, disse o professor. “Esperamos que esse relatório produza marcos transnacionais de avanço no reconhecimento da identidade de gênero e da diversidade sexual bem como seja um instrumento de conferencia de cada país na democratizaçao de suas sociedades”, completou.
Salomão Ximenes, doutor em direito e professor da UFABC, também destaca que a agenda antigênero na educação brasileira vem sendo implementada em duas frentes. “Primeiro, com maior visibilidade promoveu-se a disseminação de leis e projetos de lei de censura à temática nas escolas, resultado do encontro entre esta agenda e o escola sem partido entre 2014 e 2015, servindo desde então de combustível à ação da militância antigênero em perseguição a docentes e escolas e, o que é ainda mais preocupante, à própria autocensura destes”, disse.
A segunda frente, segundo ele, vem sendo implementada por dentro da burocracia federal da educação, com a gradativa eliminação na prática das pautas de gênero e diversidade das políticas públicas do MEC.
“A culminância disso é o Edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD 2021), que parametriza a redação e produção dos livros a serem distribuídos a dezenas de milhões de estudantes em todo o país durante os próximos anos”, disse.
Segundo ele, diferente dos editais de 2014 e 2017, a atual base elimina as seguintes cláusulas que impediam obras de veicular estereótipos e preconceitos de condição socioeconômica, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade, de linguagem, religioso, de condição de deficiência, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos humanos.
Num outro trecho, o edital substitui a especificação ao tratar da temática de gênero. Nas versões anteriores exigia-se que o tema fosse abordado “segundo uma perspectiva sexista não igualitária, inclusive no que diz respeito à homo e transfobia”.
Agora, o novo texto apenas fala em “promover positivamente a imagem dos brasileiros, homens e mulheres”.
Para ele, o edital “apaga a identidade de gênero e substituindo-a por modelo hierarquizado e binário das relações sociais e discursivas travadas entre os indivíduos, o oposto do recomendado no relatório do especialista independente da ONU”.
“Este relatório tem grande importância ao reiterar na normativa internacional de direitos humanos o dever estatal de assegurar a educação sexual e para as relações de gênero, como parte indissociável do dever estatal com a educação, em escolas públicas e privadas, e o direito autônomo de crianças e adolescentes a acessarem todo um campo do saber que não lhes pode ser negado por interesses alheios”, disse o especialista.
“Além disso, o relatório é uma interpretação autorizada dos dispositivos vinculantes do direito internacional aos quais o Brasil deve obediência, será muito útil no embate interno contra o avanço da agenda antigênero nas políticas educacionais, a começar pelo retrocesso iminente no PNLD”, completou.
Fonte: Uol/Jamil Chade