Ao todo, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo aponta como alvos de violência física, isolamento e ameaças 147 adolescentes que cumpriam medida socioeducativa na unidade Cedro, do Complexo Raposo Tavares, entre 2015 e 2017. Estavam sob tutela do Estado.
A petição à Comissão da OEA (Organização dos Estados Americanos), feita há pouco mais de um mês, traz relatos de sessões de pancadaria, documentadas em fotos e atendimentos médicos emergenciais a educandos feridos, às vezes com o emprego de cintos, correntes, cabos de vassoura, tijolos e cadeiras.
Seis anos depois, a única ação penal sobre os casos foi aberta, mas não contra os funcionários agressores, e sim contra três educandos da unidade.
“Esses casos exemplificam a violência no âmbito da Fundação Casa e as falhas sistemáticas dos órgãos do estado de São Paulo e do Brasil em investigar, punir e prevenir esse tipo de ocorrência”, afirma o defensor público Samuel Friedman, um dos responsáveis pela denúncia à OEA.
“Não se trata de um caso isolado. A violência no sistema de privação de liberdade é uma linguagem cotidiana. O que esse caso tem de diferente é sua documentação, algo que nem sempre se consegue.”
Também não se trata de exceção na morosidade das instituições. A falta de conclusão do caso mais emblemático nesse campo, o do massacre do Carandiru, de 1992, com 111 presos mortos por policiais, é apenas um dos incentivos para o apelo da Defensoria à CIDH –instância supranacional de direitos humanos, à qual o Brasil aderiu e da qual reconhece jurisdição.
A violência relatada na peça da Defensoria é sistemática: usada como corretivo generalizado para tumultos e desobediências pontuais e aplicada em rituais como a “recepção” e a “tranca”. No primeiro, recém-chegados à unidade, destinada a reincidentes, eram conduzidos a uma sala e espancados por funcionários. Já a “tranca” é o isolamento de adolescentes durante 24 horas por dia, às vezes por semanas a fio, como constatado em visita do conselho tutelar de 2016.
“Lá no Cedro, uma unidade que não passou por reformas e parece um presídio, como as antigas Febem, encontramos meninos na tranca por semanas em quartos úmidos e mofados. Eu pergunto: do ponto de vista pedagógico, ele está aprendendo o quê?”, questiona o conselheiro tutelar Gledson Silva Deziatto, 39, que atua na área de medidas sócio-educativas há 9 anos em São Paulo. Durante a pandemia, a unidade foi fechada.
Ainda em 2016, a Comissão Interamericana impôs medidas cautelares ao Estado brasileiro por conta dos casos de 2015 e 2016. Pediu que fossem adotadas medidas para preservar a integridade física dos adolescentes e proibir punições disciplinares contrárias aos padrões internacionais, além de ter requisitado informações sobre as investigações dos fatos.
Ainda assim, as práticas continuaram em 2017, em casos levados pela Defensoria a juízes da área da infância, que se recusaram a ouvir os adolescentes agredidos, tomando informações sobre os fatos apenas com a direção da Fundação Casa.
Quatro funcionários do Cedro foram demitidos, mas suas condutas permanecem sem responsabilização seis anos depois.
A denúncia de agora à Comissão da OEA sugere um jogo de empurra-empurra entre polícia, Ministério Público, Tribunal de Justiça de São Paulo e a própria Fundação Casa.
O delegado de polícia responsável pelos primeiros anos de investigações chegou a protocolar ofício em que acusa a Fundação Casa de dificultar a apuração dos fatos. A Fundação Casa nega.
“A Fundação não tem gerência ou ingerência numa intimação direcionada a funcionários. Dados sobre adolescentes são protegidos pelo ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] e fornecidos mediante autorização judicial. A Fundação Casa não pode descumprir uma determinação legal”, afirma Fernando José da Costa, secretário de Justiça de São Paulo e atual presidente da Fundação Casa.
Costa diz que os funcionários identificados como agressores foram exemplarmente punidos ao serem demitidos por justa causa e que as informações foram prestadas ao Ministério Público. “Quem investiga a relação do crime é o Ministério Público e o Poder Judiciário, e não a Fundação Casa, que tem uma corregedoria atuante”, completou.
“É inaceitável que o servidor pratique violência física e não seja punido. Da mesma forma que não podemos permitir que um jovem pratique violência contra servidor sem sofrer punição no âmbito das medidas sócio-educativas”, diz Costa, que destacou medidas tomadas pela instituição para reduzir casos de agressão, como diminuição do número de adolescentes por unidade.
“Vamos implantar câmeras para fiscalizar todas as 125 unidades da Fundação. Isso poderá defender o servidor que faz um bom trabalho e trazer uma prova importante contra aqueles que fazem um mau trabalho e que são exceção.”
Questionado, o Ministério Público de São Paulo afirmou em nota que há inquéritos policiais tramitando para a apuração das denúncias. Não explicou, no entanto, por que casos graves como esses seguem inconclusos. Tampouco informou por que concordou com o arquivamento de investigações, por prescrição de falta funcional, feitas pelo juiz corregedor da Fundação Casa, dado que os casos envolviam crime de tortura, que é imprescritível.
O Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou em nota que notícias de irregularidades na unidade Cedro ensejaram a instauração de pedido de providências e processos administrativos.
O defensor Friedman, contudo, critica. “Não houve qualquer providência além da demissão de alguns funcionários da unidade. Não houve reconhecimento da responsabilidade do Estado ou apuração das responsabilidades civis e criminais dos agentes nem tampouco reparação às vítimas”, diz. “A falta de responsabilização promove a impunidade e deixa tudo funcionando da mesma maneira.”
Segundo Deziatto, denúncias de agressões nesta e em outras unidades da Fundação Casa seguiram aumentando até o início da pandemia, quando a suspensão das visitas estancou o principal canal de comunicação dessas violências. “Quase 80% das denúncias que chegam a nós são via familiares de adolescentes que cumprem medida socioeducativa”, diz.
A petição da Defensoria à OEA solicita, além da completa e célere investigação dos fatos e do reconhecimento e reparação das vítimas, a criação de Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura nas unidades federativas onde eles ainda não existem, como em São Paulo, e a criação de programas obrigatórios de treinamento e reciclagem preventivos da tortura para pessoas que trabalham em instituições de privação de liberdade. Hoje, esses cursos e programas são opcionais.
(Com informações Folha de São Paulo)