Nos quatro anos de governo Jair Bolsonaro, o setor cultural enfrentou cortes e reduções em uma dimensão até então desconhecida. Os membros do Grupo Técnico (GT) da Cultura, que integra a equipe de transição do futuro governo Luiz Inácio Lula da Silva, encontram-se reunidos em Brasília, a fim de deliberar sobre medidas de reestruturação e sobre a revogação de decretos que dificultaram ou inviabilizaram as atividades culturais no país.
Entre as primeiras medidas asseguradas como prioridade por membros do GT está a recriação do Ministério da Cultura (MinC) – extinto via medida provisória editada em 1° de janeiro de 2019, o primeiro dia do governo Bolsonaro, e rebaixado a uma Secretaria Especial vinculada primeiro ao Ministério da Cidadania e depois ao do Turismo.
No entanto, é consenso entre profissionais do setor que recriar o MinC apenas não basta: é necessário readequar seu orçamento, suspender mudanças feitas na aplicação de determinadas leis e reconstruir a estrutura de fomento que foi desmantelada nos últimos quatro anos.
Além disso, é preciso recuperar cargos que foram transferidos da Cultura para as pastas da Cidadania e do Turismo, por exemplo. “Estamos falando de uma estrutura institucional drasticamente reduzida e precarizada nas suas condições mais básicas de trabalho”, afirma a deputada federal Áurea Carolina (Psol-MG), uma das coordenadoras do GT da Cultura.
“Cenário de terra arrasada”
“A situação é de calamidade, não só por causa da extinção do MinC, mas também pela depauperação do conjunto das instituições: a Cinemateca pegou fogo, a Fundação Casa de Rui Barbosa perdeu grande parte dos seus pesquisadores, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) teve suas atribuições subvertidas, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) não tem condições de cuidar das próprias instituições ligadas ao governo federal nem de produzir uma política articulada”, aponta Márcio Tavares, Secretário Nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores (PT) e também coordenador do GT.
Áurea Carolina, que foi vice-presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados entre 2019 e 2021, salienta que será preciso restabelecer “uma estrutura robusta de políticas culturais que havia sido construída anteriormente a duras penas, durante anos”.
Segundo ela, as informações analisadas pelo GT no momento deixam claro “como o desmonte está diretamente relacionado ao sequestro total da máquina pública“, com “episódios de autoritarismo, censura e dirigismo nos editais públicos”. Para a deputada, “é um cenário de terra arrasada”.
Revisão após esvaziamento da Lei Rouanet
Uma das certezas de alteração das políticas culturais a partir de 2023, de acordo com Tavares, é a revogação imediata do decreto do governo federal que esvaziou a Lei Rouanet. “É preciso instituir um novo decreto que faça com que o mecanismo funcione com transparência e diligência”, assegura.
Essa revisão dos mecanismos de fomento via Lei Rouanet é também um dos pontos defendidos pela “Carta do Rio Grande do Sul”, documento divulgado ao fim do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, que reuniu em meados de novembro delegações das cinco regiões do país.
“Houve uma política deliberada de desmonte da cultura brasileira. Identificamos, nos últimos quatro anos, um compromisso de bases ideológicas autoritárias e persecutórias associadas à Lei Rouanet”, diz Beatriz Araújo, titular da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul que coordenou o Fórum.
“Houve cooptação política de raiz conservadora e descaso oficial com o patrimônio brasileiro, os museus, as bibliotecas, as fundações e as manifestações artísticas. Vivenciamos o cancelamento do pluralismo das nossas expressões identitárias e ações deploráveis contra povos originários, comunidades quilombolas, expressões religiosas de matriz africana e a cultura negra em geral”, completa a secretária.
Fundamental para os signatários da Carta, segundo Araújo, é também a aplicação imediata das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2. “Essas leis são estruturantes para a cultura brasileira, seu impacto positivo é imenso. Com elas, serão mais de R$ 18 bilhões aplicados sistematicamente, ao longo de cinco anos, para 5.570 municípios do país. E, nesse conjunto, as leis propõem que o poder público preveja ações afirmativas para os grupos mais vulneráveis.”
Descentralização da política cultural
Garantir uma política cultural descentralizada, que inclua a diversidade e dê atenção a manifestações fora dos grandes centros, é outra preocupação dos profissionais do setor.
Para isso, “é fundamental um levantamento minucioso para identificar as ilegalidades, localizar os recursos, saber o que será necessário para desobstruir os processos”, defende Araújo.
A gestora cultural Dane de Jade, coordenadora do Escritório Regional Cariri, vinculado à Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, concorda ser essencial que o próximo governo retome políticas descentralizadas. “No momento, temos uma lista enorme de urgências diante do que herdamos do governo Bolsonaro”, diz.
São demandas que, uma vez resolvidas, trarão benefícios imediatos, dada “a interseção do setor com diferentes esferas econômicas – do turismo à arquitetura, da economia criativa à gestão de eventos”. “Um setor que gera empregos diretos e indiretos e estabelece um diálogo com todos os pilares da vida em sociedade: educação, espaço urbano, política, arte”, analisa a gestora.
O exemplo do audiovisual
A retomada de políticas de descentralização é também uma reivindicação dos profissionais ligados ao audiovisual no país. Durante o atual governo, a Secretaria do Audiovisual (SAV) foi descaracterizada de suas funções, aponta Cíntia Domit Bittar, sócia da Novelo Filmes, sediada em Florianópolis, e diretora da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API).
“Reestruturar a SAV e fomentar sua capacidade de formação técnica especializada é sem dúvidas uma das ações que esperamos. É importante prever formações de profissionais, levando em consideração diagnósticos das áreas de maior necessidade. E é necessário não só formar, como também proporcionar oportunidades de qualificação de agentes já atuantes no mercado”, diz Bittar.
Durante os últimos quatro anos, o cinema brasileiro sofreu uma paralisação inédita nas estruturas de fomento. O governo Bolsonaro, segundo Bittar, “será lembrado na história como aquele que fez realmente tudo o que podia para destruir o audiovisual brasileiro independente”.
Etapas do desmonte
Além do “apagão de dados e pesquisas sobre o desenvolvimento do setor” nos últimos quatro anos, Bittar cita “a indicação de nomes notoriamente incapazes de gerir pastas importantes da cultura”, bem como o desmonte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e a paralisação de programas importantes da Agência Nacional do Cinema (Ancine).
Retomar as atividades do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), mantendo a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), é considerado essencial para o financiamento do audiovisual. As arrecadações via Condecine fluem para o FSA, operado pela Ancine, e, portanto, abdicar desses recursos coloca em risco toda a atividade cinematográfica no país.
“Já tratamos da volta da Condecine, porque esse será um instrumento fundamental nos próximos anos”, garante Tavares.
Entre outras demandas do setor, estão ainda, de acordo com Bittar, a nomeação de pessoas que compreendam e trabalhem a favor do audiovisual independente, políticas voltadas para a diversidade e pluralidade, investimentos para aumentar o número de salas de exibição, criação de salas independentes e a manutenção da “cota de tela” (mecanismo que obriga as salas brasileiras a exibir filmes nacionais por um número mínimo de dias por semana).
Políticas culturais como políticas de Estado
A chave para prevenir tais cenários de destruição no futuro está, portanto, “na transformação de políticas culturais em políticas de Estado”, acredita Tavares.
Uma das medidas preventivas nesse sentido é, segundo Áurea Carolina, o Marco Regulatório do Fomento, sugerido em projeto de lei que visa reduzir as desigualdades de acesso aos mecanismos de fomento das políticas culturais. “Isso é importante justamente para que a cultura não fique à mercê de possíveis gestões autoritárias no futuro”, defende a deputada.
Além disso, sugere Bittar, “também se faz necessária uma campanha informativa e pedagógica, para que o povo brasileiro compreenda a importância das políticas culturais, de forma que esses temas sejam defendidos por toda a sociedade com propriedade e com a garra de quem sabe o impacto do setor na economia, na geração de emprego e renda, no turismo, na memória, na identidade, enfim, em nossa soberania nacional”.
Fonte: DW Brasil