O Brasil viola artigos fundamentais do tratado sobre desaparecimentos forçados e precisa adotar medidas urgentes para cumprir suas obrigações internacionais, inclusive impedindo que casos envolvendo forças de ordem sejam tratados por tribunais militares. Essas são algumas das conclusões do Comitê da ONU sobre Desaparecimentos Forçados que, pela primeira vez, avaliou o caso do país. Entre as recomendações, o órgão sugere que a lei da Anistia não pode ser usada para impedir que casos de crimes da ditadura militar (1964-1985) sejam investigados e punidos.
Na semana passada, o governo brasileiro de Jair Bolsonaro foi examinado pelo Comitê, numa sessão que deixou os membros do organismo chocados com a atitude que chegou a ser qualificada de “arrogante” por parte de certos membros da delegação brasileira.
Agora, a entidade publica suas conclusões e suas recomendações, deixando claro que o Brasil não cumpre o direito internacional. Ao longo do texto divulgado nesta quarta-feira, o Comitê repete de forma insistente que “lamenta” a postura adotada pelo governo, cobra mudanças profundas e critica a reação das autoridades em Brasília.
Trata-se de uma das primeiras conclusões formais de um órgão da ONU durante o atual governo, aprofundando o mal-estar internacional em relação ao Brasil.
De acordo com o texto final, o Comitê destaca como o governo tentou passar a mensagem de que “não há indicação clara de que desaparecimentos forçados ocorreram “durante a democracia brasileira”, pelo menos em qualquer escala significativa”. Mas o órgão não saiu convencido. O Comitê indicou que está “preocupado com as informações recebidas sobre desaparecimentos forçados alegadamente perpetrados em tempos recentes, principalmente contra pessoas de ascendência africana e pessoas que vivem em favelas ou nas periferias das grandes cidades”.
“Também está preocupada com alegações de que o progresso na investigação de casos de desaparecimentos forçados é limitado, contribuindo assim para a impunidade de tais crimes”, alerta.
Investigações sobre desaparecimentos não podem ocorrer em tribunais militares
Uma das preocupações do Comitê da ONU se refere ao tratamento de homicídios ou desaparecimentos forçados cometidos por militares ou agentes de segurança, já que tais casos poderiam acabar em tribunais militares.
“A este respeito, o Comitê está preocupado com informações de que, em 2018, o Tribunal de Justiça da Bahia decidiu que, precisamente com base na Lei nº 13.491/2017, a jurisdição militar era competente no caso do suposto desaparecimento forçado de Davi Fiuza no estado da Bahia em 2014”, disse.
“O Comitê reafirma sua posição de que, como questão de princípio, todos os casos de desaparecimento forçado devem ser tratados somente pelas autoridades civis”, defende.
Assim, o Comitê da ONU recomenda que o Brasil “tome rapidamente as medidas necessárias para garantir que a investigação e o processo dos casos de desaparecimento forçado sejam expressamente excluídos da competência dos tribunais militares”.
Os peritos ainda lamentam não ter “recebido esclarecimento quanto à estrutura legal que estabeleceria um mecanismo para assegurar que as forças policiais ou de segurança não participem da investigação de um suposto desaparecimento forçado quando um ou mais de seus membros forem suspeitos de terem estado envolvidos na prática do crime”.
“O Comitê recomenda que o Estado parte estabeleça um mecanismo para assegurar que as forças policiais ou de segurança, sejam civis ou militares, cujos membros são suspeitos de terem cometido um desaparecimento forçado, não possam participar de nenhuma etapa da investigação”, pede a ONU.
Lei de Anistia e silêncio sobre crimes da ditadura
Mas uma das principais conclusões ainda se refere à incapacidade de o governo de lidar com os crimes do passado.
“O Comitê também está preocupado com as denúncias de desaparecimentos forçados que alegadamente começaram antes da entrada em vigor da Convenção para o Estado parte em dezembro de 2010, em particular entre 1964 e 1985, e que estão em andamento uma vez que as pessoas desaparecidas não foram localizadas”, apontou.
“O Comitê lamenta a falta de envolvimento do Estado em relação a esses casos durante o processo de relatório”, diz a conclusão, numa crítica direta ao governo.
“Com relação aos desaparecimentos forçados alegadamente perpetrados de 1964 a 1985, o Comitê saúda a criação da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Especial sobre Mortes e Desaparecimentos Políticos e seu importante trabalho. Entretanto, está preocupado com os relatórios relativos à falta de responsabilização por tais desaparecimentos forçados, principalmente devido à aplicação da Lei de Anistia nº 6.683/79, e lamenta não receber informações suficientes sobre os progressos alcançados até o momento na busca e, em caso de morte, identificação das pessoas desaparecidas durante aquele período”, diz.
Entre as recomendações, o Comitê pede que o Brasil “adote as medidas necessárias para garantir os direitos à justiça, à verdade e à reparação de todas as vítimas de desaparecimentos forçados, independentemente de quando o desaparecimento tenha começado”.
Eis as principais recomendações ao Brasil:
(a) Garanta que todos os casos de desaparecimento forçado sejam investigados prontamente, de forma completa e imparcial, mesmo que não tenha havido uma queixa criminal formal; e que os supostos infratores sejam processados e, se considerados culpados, punidos de acordo com a gravidade de seus atos;
(b) remover quaisquer impedimentos legais às investigações sobre os desaparecimentos forçados perpetrados durante o regime militar que ainda não cessaram, em particular no que diz respeito à aplicação da Lei de Anistia;
(c) Redobrar seus esforços para combater a discriminação contra certos grupos vulneráveis visados como um meio de evitar seu desaparecimento e assegurar o pleno acesso a seu direito à justiça;
(d) Incentivar e facilitar a documentação e apresentação de queixas pelos atores da sociedade civil, assim como a participação de parentes nas investigações; e assegurar que os parentes sejam regularmente informados sobre o progresso e os resultados das investigações;
(e) Acelerar seus esforços para localizar e, em caso de morte, identificar todas as pessoas sujeitas a desaparecimento forçado cujos destinos ainda não tenham sido esclarecidos.
A este respeito, o Comitê encoraja o Estado parte a assegurar que os esforços que empreende na busca de pessoas desaparecidas, incluindo a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, estejam alinhados com seus princípios orientadores para a busca de pessoas desaparecidas;
(f) Assegurar a coordenação e cooperação efetiva entre todos os órgãos envolvidos nas investigações e buscas; que eles tenham os recursos financeiros, técnicos e humanos necessários para desempenhar suas funções de forma rápida e eficaz; e que tenham efetivo e oportuno para qualquer lugar de detenção ou qualquer outro lugar onde haja motivos razoáveis para acreditar que a pessoa desaparecida possa estar presente, bem como para toda a documentação e outras informações relevantes que possam estar na posse de agências do Estado, incluindo as forças armadas;
(g) Garantir que todas as vítimas recebam uma reparação adequada que seja sensível às suas necessidades específicas.
Críticas contra o governo
O Comitê, porém, não deixou de criticar a delegação brasileira que, durante o exame na ONU, optou por questionar os dados apresentados sobre o assunto pela sociedade civil.
“O Comitê lamenta as declarações feitas durante o diálogo questionando a credibilidade e a qualidade dos relatórios apresentados pelos atores da sociedade civil ao Comitê”, disse.
“O Comitê gostaria de lembrar o importante papel das organizações da sociedade civil para a erradicação e prevenção de desaparecimentos forçados, bem como para a assistência às vítimas”, alertou.
Para a ONU, o Brasil precisa “garantir que todos os agentes do Estado se envolvam construtivamente com os atores da sociedade civil envolvidos na tentativa de estabelecer as circunstâncias dos desaparecimentos forçados e o destino das pessoas desaparecidas, e a ajudar as vítimas de desaparecimentos forçados, com o objetivo de unir esforços para prevenir e erradicar os desaparecimentos forçados”.
Mais críticas
Ao longo do texto, o Comitê ainda cita diversas violações cometidas pelo Brasil. O grupo da ONU, por exemplo, “lamenta os atrasos regulares nas respostas” das autoridades quando são questionadas sobre casos específicos.
“O Comitê exorta o Estado Parte a reforçar sua cooperação no âmbito do procedimento de ação urgente e a adotar todas as medidas necessárias para garantir o processamento imediato e o acompanhamento oportuno das comunicações transmitidas relativas à ação urgente”, pediu.
A ONU ainda criticou o fato de que o Brasil não reconheceu a competência do Comitê para avaliar casos apresentados aos membros por vítimas. “O Comitê lamenta a afirmação da delegação de que não há sinal de que o Estado parte reconhecerá tal competência “num futuro muito próximo”.
Sem dados
O Comitê da ONU ainda “lamenta que o Estado parte não tenha fornecido informações estatísticas desagregadas sobre pessoas desaparecidas”. Entre as recomendações, o grupo pede que o Brasil tome “as medidas necessárias para gerar rapidamente informações estatísticas precisas e atualizadas sobre pessoas desaparecidas, desagregadas por sexo, idade, nacionalidade, local de origem e origem racial ou étnica”.
“Tais informações estatísticas devem especificar a data do desaparecimento; o número de tais pessoas que foram localizadas, vivas ou falecidas; e o número de casos em que pode ter havido alguma forma de envolvimento do Estado”, aponta.
Também preocupa a ONU o fato de o Brasil ainda não ter adotado uma lei exclusivamente sobre o desaparecimento forçado. De acordo com a entidade, mesmo os projetos em tramitação contam com penas baixas, de 6 a 10 anos de prisão.
Fonte: UOL/Chade