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O Brasil está sob ocupação inimiga

SE ESTIVÉSSEMOS NA RÚSSIA, seríamos proibidos de sequer mencionar que há uma guerra no país ao lado, a Ucrânia. A versão oficial, imposta por lei pelo governo, é que soldados russos foram enviados para uma missão de paz, para resgatar gente de sua etnia diante de uma emergência humanitária. A mera aparição de palavras como “guerra” ou “invasão” nos meios de comunicação pode custar anos de cadeia – elas devem ser substituídas por alguma expressão neutra e inofensiva, como “operação militar especial”.

Como a Ucrânia, o Brasil muito evidentemente está neste momento sofrendo uma agressão militar ilegal e uma ocupação planejada de seu patrimônio e de suas instituições. A diferença é que, no nosso caso, são nossas próprias Forças Armadas que nos atacam, enquanto, ao modo de Putin, repetem enfaticamente que só estão defendendo a população.

Quando iniciou sua “operação militar” na Ucrânia, em 2014, Putin invadiu a península da Crimeia com soldados sem insígnias pilotando tanques sem bandeiras, que iam ocupando todos os pontos estratégicos da região – os lugares de onde se operava a administração, o financiamento, a comunicação. Putin passou meses negando que aqueles soldados fossem russos, embora falassem russo, se vestissem como russos, carregassem armas russas, se comportassem como russos, bebessem como russos. O presidente dizia que eram apenas patriotas locais que agiam por vontade própria: uma espécie de exército espontâneo que se materializou no território inimigo, tomando-o (e depois repassando-o à Rússia).

Aqui no Brasil também as Forças Armadas vêm, há anos, desde o governo Temer, ocupando os espaços de poder. Em 2020, um levantamento do Tribunal de Contas da União concluiu que já havia mais de 6 mil militares em lugares estratégicos do governo federal, um número que quase certamente continuou crescendo depois disso, só que mais discretamente. Também aqui os militares vêm negando que estejam empreendendo qualquer ação coordenada contra o Brasil civil. Seria só uma coincidência – um acúmulo de indivíduos que calharam de ser militares, movidos pelo patriotismo, se posicionando por acaso nos lugares estratégicos do país.

Mas os livros de memórias dos envolvidos revelam que a sequência de ações que nos trouxe até o lugar no qual estamos não foi assim tão casual. No depoimento que deu para o livro “A Escolha”, sobre sua presidência, Michel Temer admitiu que o comandante do Exército à época, o General Eduardo Villas Bôas, lhe deixou claro para ele que estava insatisfeito com sua antecessora, Dilma Rousseff. A história que vai dessa insatisfação até o impeachment da presidenta, pouco depois, e que resultou na ocupação de centenas de cargos civis no governo Temer e da segurança pública do Rio de Janeiro por militares nunca foi contada com os devidos detalhes.

Dois anos depois do impeachment, em 2018, o mesmo Villas Bôas achou por bem enviar de sua conta pessoal um tweet ameaçador ao Supremo Tribunal Federal, que estava diante de uma decisão crucial que poderia colocar na cadeia o candidato líder nas pesquisas para presidente da República, Lula. No tweet, Villas Bôas deixou claro que não queria Lula solto.

O livro de memórias de Villas Bôas, lançado em 2021, revelou que esse tweet não foi uma ação impensada de um general irritado com um celular na mão: foi fruto de uma deliberação oficial do Alto Comando do Exército. “O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte da expedição, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo expediente, até por volta das 20h”, confessou o comandante. Quer dizer: uma estrutura do estado dedicou um dia inteiro de seus (nossos?) recursos e de sua atenção ao trabalho metódico de atacar um poder da República e interferir na democracia. Soa bastante como uma traição.

Se o objetivo dos militares com essa interferência era chegar ao poder, é difícil afirmar. O fato é que chegaram, com a eleição de um militar.

Os especialistas divergem sobre se Bolsonaro e os militares são uma coisa só (o chamado “Partido Militar”, no qual Bolsonaro faz o trabalho útil de criar o caos, clima propício para que generais se digam agentes da ordem) ou se têm interesses divergentes. Ainda que os tenham, é evidente que as Forças Armadas e as forças de segurança embarcaram já há muito tempo na aventura autoritária bolsonarista.

Deixaram isso claro em 2021, quando o Tribunal Superior Militar inocentou o general Eduardo Pazuello, numa decisão sobre a qual impôs segredo de 100 anos, da infração que cometeu em público (subiu num palanque com Bolsonaro, algo impensável numa democracia, que por definição separa o poder político do poder das armas).

Pazuello é bom exemplo de militar que se comportou como um interventor num país inimigo. Coube a ele a missão de gerir a saúde do Brasil no momento mais crucial de todos os tempos: a escalada exponencial da pandemia de covid. O Ministério da Saúde não se ocupou em preparar o país não se ocupou em preparar o país para enfrentar a doença. Não mexeu uma palha para evitar que centenas de pessoas fossem mortas por privação de oxigênio em Manaus. Também não pareceu se incomodar muito com o fato de a pasta ter virado um antro de corrupção para se aproveitar da crise sanitária, quase sempre com envolvimento de militares.

Em vez disso, dedicou-se a missões típicas de uma guerra. Por exemplo, empreendeu esforços para maquiar os números de doentes e de mortos, para impedir que a sociedade soubesse o que estava acontecendo (só temos números porque os órgãos de imprensa fizeram um consórcio). O MS não geriu a saúde: fez uma gestão da morte.

Não há chances de este país viver em paz enquanto estiver sob o jugo de forças armadas e de segurança que não respeitam ou obedecem à lei e à população civil.

A gestão da morte, aliás, tem sido uma missão preferencial que Bolsonaro vem entregando às Forças Armadas. Isso se vê com muita clareza na forma como o país está lidando com a natureza e os povos indígenas. Na Funai, a grande maioria dos cargos de comando está sob ocupação de militares ou policiais. O mesmo está acontecendo com grande parte das áreas de preservação ambiental.

Em 2020, quando a devastação ambiental ficou muito na cara, diante das imagens de queimadas na Amazônia, e começou a repercutir mal na Europa, outro general, o vice-presidente Hamilton Mourão, recebeu a atribuição de comandar um certo Conselho da Amazônia. Quando lhe perguntaram qual era sua missão, ele nem disfarçou: “Nós temos que ter uma estratégia de comunicação que permita-nos contrapor, com fatos, acontecimentos e ações governamentais, de modo que a gente inverta essa situação que estamos vivendo e passe a ter um domínio, um controle dessa narrativa”.

Ou seja, nem lhe passou pela cabeça que seu papel fosse evitar a destruição. Ele só queria suprimir a informação sobre ela. Esse descaso dos militares com o seu papel de defesa ficou evidente no mês passado com o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na floresta amazônica, crime ignorado até onde foi possível pelas Forças Armadas, apesar de ter ocorrido em região de fronteira.

A atuação dos militares no governo tem uma lógica de ocupação. Não por acaso, há inúmeros militares estacionados em cargos em que se decide a execução do orçamento e a produção de informação. Enquanto o Brasil reduzia brutalmente os orçamentos de Educação, Saúde, Ciência e Inovação, o único orçamento a crescer – expressivamente – foi o da Defesa. Os generais envolvidos mais diretamente no orçamento estão conseguindo aprovar para si próprios aumentos fabulosos de salário, ao mesmo tempo em que tiram tudo da população brasileira.

Recentemente, veio a público um plano elaborado pelo instituto do General Villas Bôas para a próxima década no Brasil. É o tipo de plano que se faz para um país sob domínio inimigo: tornar saúde e educação pública menos acessíveis, reduzir direitos, exigir obediência.

Agora os generais dedicam-se a ficar cotidianamente ameaçando a população civil, repetindo as teorias conspiratórias que o presidente inventa para avisar que a democracia não significa nada. O último foi Walter Braga Netto, que Bolsonaro colocou na sua chapa como vice, certamente não para ganhar votos.

Ainda que se fique otimista com as baixas chances eleitorais de Bolsonaro, libertar o Brasil dessa ocupação não é algo que se resolva só com uma eleição. Não há chances de este país viver em paz enquanto estiver sob o jugo de forças armadas e de segurança que não respeitam ou obedecem à lei e à população civil.

Está chegando a hora de começar a conversar a sério sobre como as Forças Armadas irão reparar o que fizeram ao país. E também sobre como este país irá reformar essas forças para que elas nunca mais possam fazer isso outra vez.

Fonte: The Intercept

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