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Ministro trocou chefe da PF que colaborava com o STF por delegado leal a Jair Bolsonaro

A forma acintosa com a qual Jair Bolsonaro encetou o plano de interferir na Polícia Federal para proteger os seus familiares, dois anos atrás, desencadeou não apenas um inquérito contra o próprio presidente no Supremo Tribunal Federalmas também uma profunda crise de credibilidade em uma das instituições mais confiáveis do país. Além de desmontar o aparato de combate à corrupção que vinha funcionando desde os tempos da Lava Jato, as seguidas trocas na cúpula da PF acabaram dando certa legitimidade ao costumeiro discurso de perseguição política usado por quem é alvo de uma operação. Imaginava-se que o Palácio do Planalto tivesse plena confiança no alto comando da corporação. Mas não era o caso – três semanas atrás, o presidente autorizou a troca do então diretor-geral, Paulo Maiurino, por Márcio Nunes, homem da extrema confiança de seu ministro da Justiça, o também delegado Anderson Torres.

Por mais que tenha conseguido avançar bastante no seu plano original de alinhar a PF às suas conveniências políticas e pessoais, Bolsonaro ainda não havia conseguido preencher a cúpula da instituição integralmente com policiais que pudessem ser considerados leais ao seu estado-maior. Apesar de ter um perfil extremamente político, Maiurino tinha outros padrinhos. Ele é intimamente próximo de Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal, com quem tem amizade desde os tempos de infância no interior paulista, e cultiva relações estreitas com a cúpula do Republicanos, partido que o indicou para alguns relevantes cargos políticos. Também é próximo do ex-governador paulista Geraldo Alckmin, virtual vice na chapa de Lula. Quando ascendeu ao comando da PF, nada disso era um problema. Toffoli e Bolsonaro estavam no auge da construção de uma amizade que se anunciava promissora, o Republicanos estava firme e forte na base do governo e Alckmin era um político próximo da aposentadoria. O cenário mudou. E, na mesma proporção, a desconfiança de que Maiurino pudesse estar servindo a outros senhores se ampliou, até ele ser demitido por telefone às vésperas do Carnaval.

A chegada de Márcio Nunes resolve o problema. Agora, o presidente pode dizer que o comando da PF é inteiramente da confiança de seu círculo mais próximo. Isso porque o xerife Anderson Torres – amigo pessoal do clã presidencial e uma das figuras mais leais a Bolsonaro na Esplanada – pôde escolher pela primeira vez, e sem a influência de terceiros, toda a diretoria, desde o diretor-geral até o chefe da poderosa área de inteligência, passando pela divisão de combate à corrupção, onde correm investigações sensíveis para o Planalto e seus aliados. Além disso, o fato de Nunes ser benquisto internamente e ter fama de competente e habilidoso faz com que o governo possa administrar de maneira mais sutil e inteligente sua relação direta com o Máscara Negra, o edifício-sede da corporação.

 

Polícia Federal DivulgaçãoPolícia Federal Divulgação
Márcio Nunes, o novo diretor-geral: solidário a Torres no momento mais crítico da carreira do hoje ministro

Anderson Torres e Márcio Nunes têm uma antiga relação de amizade. Os dois são brasilienses e fortaleceram o vínculo nos anos em que trabalharam juntos na sede da PF. Em 2011, quando veio a público uma acusação do Ministério Público de que Anderson ordenou uma investigação ilegal que terminou em tortura (o caso seria arquivado tempos depois), Nunes foi um dos poucos amigos que não lhe deram as costas. “Aquele foi o pior momento do Anderson e o Márcio deu apoio, assim como o Sandro Avelar”, lembra um colega. Avelar é o atual diretor-executivo, o 02 na hierarquia da PF, e foi nomeado para o cargo em dezembro, quando Maiurino já passava pelo processo de fritura — àquela altura, Toffoli e o Republicanos, que chegou a abrigar dois filhos de Bolsonaro, haviam se afastado do presidente e Alckmin, de quem Maiurino foi secretário em São Paulo, flertava com Lula.

Quando Anderson Torres chegou ao Ministério da Justiça, em março do ano passado, havia a expectativa de que Márcio Nunes assumiria a PF, mas a indicação de Paulo Maiurino se impôs como parte de uma articulação para tentar apaziguar a tensão entre o governo e o Supremo. Nunes, então, ficou como o número dois de Anderson na pasta, enquanto Maiurino assumiu a polícia e deu início a uma série de medidas que não foram bem recebidas nem dentro nem fora da corporação, o que expôs o governo. De maneira um tanto atabalhoada, ele afastou vários delegados experimentados que ocupavam postos-chaves, inclusive no Serviço de Inquéritos Especiais, o Sinq, que investiga políticos com foro privilegiado. Embora o novo chefe do setor, delegado Leopoldo Lacerda, tenha adotado uma postura amena na condução do inquérito que apura a interferência política na PF, aberto em 2020 a partir das acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro, Bolsonaro percebeu que Maiurino estava sendo muito mais fiel ao Judiciário do que ao Planalto nas blindagens dentro da instituição.

Crusoé apurou que a relação de Maiurino com o Supremo foi um dos principais motivos para a queda dele do comando da PF. Uma fonte com acesso direto a Jair Bolsonaro confirmou que o presidente não gostou de saber, por meio de um informe do Gabinete de Segurança Institucional, que o delegado estaria enviando informações obtidas pela Polícia Federal diretamente a ministros do STF, antes mesmo de repassá-las a Anderson Torres, seu chefe imediato. Entre essas informações, segundo essa mesma fonte, estariam dados relacionados a inquéritos em curso no Sinq, o tal setor onde correm as investigações sobre autoridades com foro – incluindo o próprio Bolsonaro e seus familiares. Procurado, o chefe do GSI, general Augusto Heleno Ribeiro, não respondeu às tentativas de entrevista feitas pela reportagem para tratar do assunto.

 

Marcos Corrêa/PRMarcos Corrêa/PRBolsonaro na fatídica reunião ministerial em que admitiu seu plano de interferir nos órgãos de investigação

Enquanto estava no cargo, Maiurino bem que tentou dirimir as desconfianças, fazendo contatos diretos com Bolsonaro, inclusive por WhatsApp, mas não deu liga. O homem de confiança do presidente sempre foi Anderson Torres, que já era amigo do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01, antes de chegar à Esplanada. O ministro, aliás, não gostou nada das investidas do subordinado de tentar construir um canal próprio com o presidente, mas estava disposto a tolerar a “insubordinação” até deixar a pasta em abril, para disputar uma cadeira ao Senado pelo Distrito Federal. Quando Bolsonaro pediu, no início do ano, para que desistisse de sair candidato, ele decidiu atender o pedido, não sem antes combinar com o presidente a troca na cúpula da PF.

A escolha de Anderson Torres parece ter sido certeira para o momento. Além da lealdade ao ministro, o que confere um canal seguro entre a direção da PF e o governo, o delegado Márcio Nunes tem um perfil completamente diferente do de seu antecessor. É discreto, técnico e muito respeitado pelos colegas. Ao contrário de Maiurino, que detinha um alto índice de rejeição interna e contribuiu para arrastar a PF para a arena política, ao divulgar uma nota institucional para rebater declarações do ex-ministro e agora presidenciável Sergio Moro, Márcio Nunes deve tirar a polícia dos holofotes e atuar de forma muito mais leve nos bastidores. Não é pouca coisa.

Manter a corporação funcionando com os ânimos internos apaziguados, sem crise, e nas mãos de delegados com boa imagem externa, mas que mantenham o governo a par do que acontece nas investigações mais sensíveis, vale muito mais do que entregá-la a policiais inábeis e ruidosos. É uma receita usada largamente na era petista que Bolsonaro, agora, parece ter aprendido. Para interferir na PF, não é preciso berrar em reuniões ou expor a corporação publicamente, como fez Bolsonaro no passado. Há mudanças sutis que podem ser feitas no dia a dia, como promoções, remanejamento de delegados ou esvaziamento de setores, que ajudam a travar ou agilizar uma investigação, a depender do interesse da cúpula, sem causar tanto ruído.

Embora Márcio Nunes não deva mudar em nada a política que escanteou o combate à corrupção – em especial os casos envolvendo figurões da Republica – e focou em multiplicar os números do enfrentamento ao tráfico de drogas, a formação da nova diretoria já ajudou a melhorar o clima interno. Entre as mudanças já confirmadas está a da escolha do delegado Caio Rodrigo Pellim para comandar uma das áreas mais sensíveis da PF, a Diretoria de Combate ao Crime Organizado e à Corrupção, a Dicor. É abaixo dela que está o setor de inquéritos especiais. Pellim chega nos próximos dias a Brasília, após uma temporada como superintendente do Ceará. Foi na gestão dele que a PF deflagrou, em dezembro, uma operação para investigar o pré-candidato pedetista à Presidência, Ciro Gomes, e o irmão dele, o senador Cid Gomes, por suposto recebimento de propina nas obras da Arena Castelão, em Fortaleza, para receber jogos da Copa de 2014. Ciro reagiu prontamente, acusando a PF de promover perseguição política para beneficiar Bolsonaro. A operação acabou anulada pela Justiça, que entendeu ter havido “constrangimento ilegal” aos irmãos Gomes.

 

Divulgação/GDFDivulgação/GDFMoretti, novo titular da poderosa diretoria de inteligência da PF, trabalhou com Anderson Torres no governo de Brasília

Anderson Torres e Caio Pellim se formaram na mesma turma, em dezembro de 2003, e cursaram juntos os seis meses de formação na Academia Nacional de Polícia. Esse é um ponto de convergência entre os nomes escolhidos para os cargos de direção na nova gestão da PF: todos, a exemplo de Nunes, são da confiança de Anderson Torres. Um deles, o delegado Alessandro Moretti, que comandará a Diretoria de Inteligência Policial, a DIP, foi adjunto de Torres quando o hoje ministro comandava a Secretaria de Segurança Pública no governo de Ibaneis Rocha no Distrito Federal. Mariana Calderon, que assumirá a Diretoria de Gestão de Pessoal, e João Vianey Xavier, que ficará com a Diretoria de Tecnologia da Informação e Inovação, são contemporâneos do ministro e do novo diretor-geral no curso de formação. A face mais política da nova gestão é a de Sandro Avelar, diretor-executivo, o segundo posto mais importante da corporação.

Para Bolsonaro, manter a PF em rédea curta e sob o comando de gente de sua extrema confiança é importante por diversas razões. Se a direção entrega um inquérito envolvendo um adversário dele a um delegado de primeira linha, competente, é quase uma garantia de que o caso avançará. Esse é um grande trunfo. Se é importante para atacar, o controle também é essencial para se defender. Há várias frentes de investigação em curso de interesse direto do presidente, de seus familiares e de aliados. Com o próprio Bolsonaro na mira, há por exemplo os casos da interferência na PF, do vazamento de dados para atacar as urnas eletrônicas e das acusações feitas pela CPI da Covid. Também há apurações que envolvem os filhos do presidente, como Jair Renan, investigado por suposto tráfico de influência, e a fanática milícia digital bolsonarista, que atentou contra as instituições. Sem falar nas investigações sobre a turma do Centrão, aliada do Planalto, que podem ser contadas às dezenas.

Não significa, evidentemente, que os delegados promovidos agora ao comando da PF se transformarão em tarefeiros do Planalto, mas colocar a casa em ordem e obedecer a cadeia de comando – fazendo investigações andarem quando for preciso ou transmitindo ao xerife Anderson Torres informações que sejam de interesse do governo – já é algo que representa uma enorme vantagem, ainda mais em pleno ano eleitoral. Se para os delegados vale o benefício da dúvida, no caso de Torres não faltam evidências de fidelidade ao presidente.  A tentativa de censura ordenada nesta semana pelo Ministério da Justiça ao filme do humorista Danilo Gentili ilustra bem o nível da relação – o caso ocorreu na esteira dos interesses do núcleo político do governo, pressionado pela claque que apoia o presidente. Para agradar ao rei, vale tudo.

Fonte: Crusoé

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