Com início previsto neste ano, a implantação do novo ensino médio ainda enfrenta obstáculos em diversos pontos do país. Um dos problemas citados por secretários da Educação e especialistas ouvidos pelo UOL é a falta de consultores que deveriam ajudar os governos estaduais na elaboração e execução do novo modelo.
A contratação de consultores foi divulgada pelo MEC (Ministério da Educação) em 2017, após um acordo financeiro da pasta com o Banco Mundial. No fim de 2020, o MEC abriu consulta e as secretarias da Educação puderam manifestar interesse em receber um profissional, que iria atuar junto às equipes das secretarias de cada estado. Segundo o Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), entretanto, nenhuma delas conta, hoje, com esse reforço.
“Fizemos a inscrição, mas ainda não chegou um consultor”, disse Isabella Santos, coordenadora estadual do novo ensino médio da Secretaria da Educação de Sergipe. “Ter esse apoio ajudaria muito na sistematização e definição das prioridades e execuções.”
Questionado pela reportagem, o MEC disse que “tem atuado na coordenação nacional de implementação do novo ensino médio com constante interlocução, apoio técnico e financeiro aos estados”. A pasta, no entanto, não explicou se os consultores serão contratados nem por que ainda não o foram.
“O empréstimo com o Banco Mundial foi revitalizado e ganhou novas perspectivas de apoio às redes. As bases do acordo foram reestruturadas em 2021 para refletir o atual momento de implementação”, informou o ministério. A pasta não disse quais foram as mudanças no acordo.
Página do Banco Mundial informa que até 31 de janeiro deste ano, dos US$ 29 milhões previstos para assistência técnica aos estados — o que inclui a contratação dos consultores —, foram desembolsados cerca de US$ 3 milhões (mais de R$ 15 milhões, atualmente). O acordo deve se estender até dezembro de 2023.
Mais horas de aula e ‘itinerários formativos’
O novo ensino médio foi aprovado em 2017, durante o governo de Michel Temer (MDB), e prevê uma reformulação em nesta etapa da formação do estudante, que ocorrer até 2024.
Neste ano, as mudanças começaram com a ampliação na carga horária — de 800 para 1.000 horas, no ano — e a implantação dos chamados itinerários formativos, uma parte do currículo que passa a ser escolhida pelos estudantes.
Como a estudante Camila Oliveira Melo, do colégio privado Pentágono, na capital paulista, ainda está dividida entre estudar negócios fora do país ou cursar medicina no Brasil, ela dividiu seus conteúdos de aprofundamento nesses dois caminhos. “No começo foi um choque, a gente não estava acostumado a ter essa liberdade [de escolher as aulas], mas agora nos adaptamos.”
O aluno João Pedro Fernandes Botelho, de uma escola técnica na capital paulista, elogiou a possibilidade de escolha. “Precisamos só saber se o estado vai fornecer todo material e opções de itinerários para estudar em cada escola” disse.
O MEC é o grande ator da política educacional, ele é o coordenador de esforço para que as políticas se concretizem”Carlos Lordelo, coordenador de ensino médio do Movimento pela Base
Para Lordelo, a contratação dos consultores era uma oportunidade de as equipes estaduais contarem com um apoio especializado. “É uma ajuda relevante e, como o desafio é grande e específico, os consultores seriam essenciais para entender a realidade de cada localidade.”
Sem os consultores, Sergipe contou com a ajuda do Consed para levar as novidades às escolas, assim como outros estados.
“Na ausência do MEC em 2019, 2020 e metade 2021, quem tocou o barco do novo ensino médio foram os estados”, afirma Vitor de Angelo, presidente do Consed e secretário da Educação no Espírito Santo.
Pelo cronograma do governo federal, divulgado em julho de 2021, a reforma do ensino médio deve ser concluída até 2024. A ideia é que, em 2022, as escolas apliquem as mudanças para as primeiras séries; em 2023, para as segundas; e, em 2024, para as terceiras séries.
Para Angelo, a chegada de um consultor, agora, não faz tanto sentido. “O desafio de implementação, neste momento, é pontual. Temos outras etapas para ter atenção que, se a gente cochilar, não vão sair do papel”, avalia o secretário.
Desafios do novo ensino médio
O presidente do Consed lembra que o processo de implementação desse modelo inclui também a reformulação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), além de mudanças no PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), para que ele fique adequado ao currículo modificado.
“A rede estadual não consegue interferir nesses itens, porque são temas nacionais”, afirma Angelo.
Lordelo, coordenador de ensino médio do Movimento pela Base, cita também a formação de professores. “É importante preparar os profissionais para essa lógica de trabalho, em que ele não desenvolve o aluno por conteúdo, mas por competência, por exemplo. Precisamos de uma formação continuada.”
Ao todo, o acordo do MEC com o Banco Mundial prevê o investimento de US$ 250 milhões até 2023 (o equivalente a mais de R$ 1,2 bilhão, atualmente). Até novembro do ano passado, última informação disponível, o governo havia gasto 40% deste total.
A reportagem questionou o ministério sobre os gastos que já foram feitos e para que será usado o restante da verba. O MEC respondeu que repassou mais de R$ 2 bilhões desde 2018 para viabilizar a reforma, e que o ensino médio foi a etapa que mais recebeu investimento do orçamento da Secretaria de Educação Básica, desde a aprovação da reforma.
“Dos US$ 92,5 milhões desembolsados desde o início do acordo, quase 55% (US$ 50,5 mi) foram alcançados nos últimos 18 meses, demonstrando uma nítida aceleração em sua execução”, disse o MEC, em nota, sem explicar como o restante do dinheiro será usado.
Desigualdade
Especialistas também apontam que a falta de coordenação do MEC no processo de implementação do novo ensino médio pode provocar mais desigualdades entre as redes públicas e privadas.
“Nas discussões de 2017 e 2018, quando essa medida começou a ganhar corpo e se tornou uma lei, já se falava de um grande risco do processo de implementação sem o apoio do MEC. O sucesso dessa medida depende da atuação do ministério, principalmente em estados mais vulneráveis”, aponta Olavo Nogueira, diretor-executivo do Todos pela Educação.
Lordelo diz que a desigualdade pode ser um risco, mas não uma consequência da implementação. “A desigualdade pode vir até mesmo dentro da rede, entre escolas rurais e urbanas”, afirma.
Se você tem que implementar uma mesma proposta em condições muito diferentes, é razoável a gente prever que isso vai aumentar a desigualdade entre escolas públicas e particulares”Olavo Nogueira, diretor-executivo do Todos pela Educação
A estudante Alice Melo, do colégio estadual João 23, de Ribeirópolis (SE), por exemplo, ainda não teve a oferta de itinerários formativos. Diferente de estudantes de colégios particulares de diversos pontos do país.
“A gente precisa se perguntar se essas mudanças vão chegar para todos os alunos e com qualidade, né? Até aqui, eu tenho gostado do que minha escola tem ofertado”, conta Alice.
Não há previsão de sanção ou punição para escolas que atrasarem o cronograma — mas todas devem seguir os planos previstos na legislação. Até o momento, segundo levantamento feito pelo Movimento pela Base, 21 estados e o Distrito Federal estão com seus referenciais curriculares aprovados pelo CEE (Conselho Estadual de Educação) e homologados.
Outros cinco aguardam aprovação do conselho. O referencial curricular é um documento que serve como orientação para as escolas desenvolverem projetos políticos pedagógicos, planejando as aulas conforme as diretrizes da Secretaria de Educação Básica.
Preparação das escolas
O principal objetivo da reforma no ensino médio é tornar a escola mais interessante, já que as últimas séries da educação básica sempre registraram índices mais altos de evasão. Paulo Rota, coordenador do tema no colégio Gracinha, em São Paulo, avalia que o desafio é grande, mas todos os alunos e familiares têm recebido as mudanças de forma positiva.
“O novo ensino médio vai valorizar as escolhas, o protagonismo estudantil. Ele não é fruto de uma política de governo, mas de Estado, e vem de uma reflexão grande sobre valorizar a perspectiva do projeto de vida dos alunos”, diz.
Luiza Pistori, aluna do colégio Santa Maria, na zona sul da capital paulista, está no último ano do ensino médio e gostou da possibilidade de escolher os temas que gostaria de aprofundar. “Todas as aulas consegui aprender de um jeito fácil, sem ser uma decoreba e os itinerários formativos me ajudaram a reafirmar minha escolha: medicina.”
No primeiro ano, Luiza escolheu se aprofundar na área de humanas para aprender melhor como se comunicar e a fazer boas redações. Nos últimos dois anos, ela quer seguir a área de biologia, mais ligada ao curso que vai prestar no vestibular.
Fonte: UOL