Em caráter reservado, eles listam vários pontos, principalmente da legislação eleitoral, que teriam sido afetados e que serão objetos de Ação de Investigação Judicial Eleitoral. Procurada pela reportagem, a campanha do mandatário não respondeu.
O primeiro ponto ressaltado é a possível afronta à determinação constitucional de que a administração pública deve ser pautar, entre outros, pelo princípio da impessoalidade (artigo 37 da Constituição).
Na legislação eleitoral, propriamente dita, Bolsonaro pode ser enquadrado, em especial, na parte que trata de abusos passíveis de desequilibrar a correlação de forças na disputa.
A Constituição determina em seu artigo 14 o estabelecimento de regras para conter “a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
A Lei das Inelegibilidades (64/1990) instituiu o rito para a apuração “de uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade”, que pode resultar na cassação do registro de candidatura ou do mandato, caso eleito e empossado.
Diante de milhares de apoiadores na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro discursou nesta quarta-feira (7) em tom de ameaça contra outros Poderes, com citação crítica ao STF (Supremo Tribunal Federal), pedido de votos e comparação da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, com a mulher do adversário Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a socióloga Rosângela Silva, mais conhecida como Janja.
Bolsonaro utilizou um caminhão de som bancado por apoiadores e estacionado na Esplanada dos Ministérios, ao lado de onde minutos antes havia acompanhado o desfile militar.
Mais tarde, no Rio de Janeiro, Bolsonaro voltou a discursar em tom de campanha na praia de Copacabana, onde também houve evento oficial pelo feriado de 7 de Setembro e pelos 200 anos da Independência do Brasil.
Na ocasião, refutou suspeitas de corrupção em seu governo, repetiu ataques ao STF e, diante de milhares de apoiadores, gritou: “Não sou muito bem-educado, falo palavrões, mas não sou ladrão”. Também afirmou que a esquerda deveria ser “extirpada da vida pública”.
Para Carlos Enrique Caputo Bastos, doutor em direito eleitoral, a conduta de Bolsonaro pode ser analisada à luz das chamadas condutas vedadas e do abuso de poder.
“O TSE verificará se houve a utilização de bens, recursos ou de serviço público com desvio de finalidade, ou seja, para indevido proveito eleitoral. No abuso há a verificação pelo tribunal da utilização de recursos em excesso [mesmo que lícitos] em detrimento da igualdade de oportunidades”, diz.
Bastos, no entanto, pondera que o tema é de análise difícil. Segundo ele, o presidente é candidato, com pedido de registro de candidatura devidamente submetido e aprovado pelo TSE.
“[Ele] tem direito de pedir voto, inclusive, independentemente de ser no dia 7 de setembro. Valer-se do sentimento patriótico é, sem dúvida, uma estratégia lícita de campanha”, afirma.
Os especialistas em legislação eleitoral ouvidos pela Folha citaram ainda o possível enquadramento por conduta vedada aos agentes públicos em campanha (art. 73 da Lei 9.504/97), propaganda irregular e desvio de finalidade.
Os advogados da campanha de Lula disseram nesta quarta que pretendem acionar o Tribunal Superior Eleitoral contra Bolsonaro. Vão apontar abuso de poder econômico e político por parte do presidente sob a alegação de que ele está usando o evento do 7 de Setembro para fazer megacomício de campanha.
“Bolsonaro fez uso indiscutível de um evento oficial para discursar como candidato. Há abuso de poder econômico e político acachapante, com o uso de recursos públicos, de uma grande estrutura pública, para fazer campanha. Os discursos desse comício escancarado foram transmitidos ao vivo para toda a nação, inclusive por meio da TV Brasil, uma TV estatal”, afirmam os advogados Eugênio Aragão e Cristiano Zanin Martins.
A Ação de Investigação Judicial Eleitoral será conduzida pelo corregedor eleitoral do TSE, Benedito Gonçalves, que toma posse nesta quinta-feira (8). É improvável, porém, que haja decisão final antes das eleições.
Antes de um veredito do tribunal, a PGE (Procuradoria-Geral Eleitoral) deverá se posicionar sobre a controvérsia. O vice-procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, monitorou os eventos dessa quarta e avalia eventuais transgressões à lei por parte de Bolsonaro.
Gonet Branco foi designado para a função pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, criticado por atuar de forma alinhada aos interesses do Palácio do Planalto.
Pela lei, Bolsonaro também tem que declarar até o próximo dia 13 (data limite para que todos os candidatos façam a prestação de contas parcial das eleições) todos os gastos para a realização dos atos eleitorais deste 7 de Setembro, incluindo a informação de eventuais custos bancados por terceiros, que se enquadra como doação de campanha.
Nesta quarta, o ministro Raul Araújo, do TSE, negou uma liminar (decisão urgente e provisória) para que o PL, partido do presidente, antecipasse a abertura das contas e demonstrasse gastos eventualmente realizados com o 7 de Setembro.
O pedido foi apresentado pelo PDT de Ciro Gomes, terceiro colocado nas pesquisas de intenção de votos.
Como a Folha mostrou em 2018, Bolsonaro omitiu da Justiça Eleitoral, sem que tenha sido punido por isso, diversos gastos de sua campanha, incluindo os detalhes de viagens que fez a pelo menos 16 cidades de 7 estados, onde ele, sua comitiva e aliados participaram de carreatas e comícios em caminhões de som.
Juristas veem possível crime eleitoral de abuso de poder de Bolsonaro
Integrantes de tribunais superiores, do MPF (Ministério Público Federal), da PGR (Procuradoria Geral da República), e especialistas em direito eleitoral ouvidos pelo UOL avaliam que os atos de 7 de Setembro realizados em Brasília e no Rio de Janeiro podem configurar abuso de poder político e econômico.
Essas são práticas eleitorais irregulares que podem levar à cassação da chapa presidencial de Jair Bolsonaro (PL) e à perda de mandato. Procurada, a campanha de Bolsonaro ainda não se manifestou a respeito.
A avaliação de juristas, procuradores e advogados é que os eventos institucionais da Independência se tornaram atos de campanha política, apesar de tentativas do presidente de tentar separá-los durante o dia.
“Misturou atividades”. Um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) destacou que Bolsonaro nem sequer focou na comemoração pelo Bicentenário da Independência em seus discursos. “Tem sempre essa nuance. Ele misturou as atividades”, disse, em caráter reservado. “A defesa vai ser a celebração de 7 de Setembro, embora ele nem tenha falado disso”, acrescentou.
De fato, Bolsonaro ignorou a comemoração do Bicentenário em seu discurso em Brasília e no Rio. O presidente da República usou o palanque para tratar de bandeiras de sua campanha à reeleição, como a proibição ao aborto e o combate à ideologia de gênero, e fazer ataques à imprensa, à esquerda e ao MST (Movimento dos Sem-Terra), por exemplo.
O entendimento dos juristas é que, se ficar comprovado que Bolsonaro usou meios do governo para convocar os atos e transformar um evento público em comício eleitoral, ele poderia ser punido pelo crime de abuso de poder político.
Teve abuso de poder? E, se usou a estrutura do Estado para financiar deslocamentos e transmitir esse evento pela televisão pública, isso poderia ser configurado como abuso de poder econômico. “Às vezes os dois andam juntos”, disse o ministro do Supremo.
A posição se assemelha à de um ministro e um ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) também ouvidos pelo UOL. Ambos afirmam que o presidente pode ter cometido abuso de poder político e poderia responder pelos atos na Corte Eleitoral.
Ex-presidente do STF, Carlos Ayres Britto afirmou ao UOL que o discurso de Bolsonaro transformou o desfile de 7 de Setembro em um palanque político com ataques à democracia e ao sistema eleitoral.
A Constituição resultou estapeada nesse discurso. Quem elaborou a Constituição não foi um governo, foi a nação brasileira. Não há chefe da nação. A nação é que é chefe de todo mundo” – Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo, em entrevista ao UOL neste 7 de setembro
O que é abuso de poder político e econômico? O abuso de poder político e o abuso de poder econômico são duas condutas consideradas ilegais pela Justiça Eleitoral que podem levar à inelegibilidade de um candidato por até oito anos, além da perda do mandato e a cassação da chapa eleitoral.
Apesar de semelhantes, as duas práticas têm diferenças:
- o abuso de poder político ocorre quando o candidato utiliza de sua posição de poder para influenciar o eleitor por meio de sua autoridade.
- o abuso de poder econômico consiste na utilização excessiva de recursos financeiros em prol de uma candidatura, partido ou coligação que possa provocar desigualdade entre os candidatos e desbalancear a disputa.
Tanto o Ministério Público como as candidaturas adversárias podem apresentar ações — União Brasil e Rede afirmaram que vão acionar o TSE — para apontar supostos abusos cometidos por Bolsonaro. Este tipo de processo fica sob a relatoria do corregedor-geral eleitoral, posto ocupado atualmente pelo ministro Benedito Gonçalves.
O que dizem integrantes do MPF? Para integrantes do MPF e da PGR ouvidos pela reportagem, Bolsonaro poderia ser enquadrado pelos crimes de abuso de poder político ao utilizar o ato cívico de 7 de Setembro a favor de sua própria campanha, incluindo a participação de servidores do governo.
O abuso de poder econômico, por sua vez, poderia ficar demonstrado no uso de verba pública para montar a estrutura que recebeu o presidente e apoiadores na Esplanada dos Ministérios. O local foi montado para os desfiles militares, mas acabou sendo usado secundariamente durante o discurso do presidente.
Um inquérito civil foi instaurado pelo Ministério Público Federal para questionar o governo sobre medidas adotadas para prevenir que os atos de 7 de Setembro se tornassem eventos eleitorais.
Após os discursos de Bolsonaro, o UOL apurou que os procuradores vão pressionar para saber sobre o “convite” feito a servidores para que participassem do evento. O objetivo principal é saber se os funcionários públicos foram obrigados a comparecer.
Comparações eleitorais. Um dos procuradores do MPF ouvidos pela reportagem disse que, embora Bolsonaro tenha tomado o cuidado de não citar nominalmente seus adversários na disputa, o presidente fez diversas comparações eleitorais, incluindo uma fala machista citando a primeira-dama Michelle Bolsonaro e Janja, esposa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), além de mencionar assuntos que não têm relação com a Independência.
Uma procuradora que atua com questões eleitorais afirma que a simples retirada da faixa presidencial e fato de o discurso ter sido feito em um carro de som particular não é suficiente para separar o desfile do ato de campanha.
Os procuradores avaliam ainda que a confusão entre o que é evento cívico e o que é ato de campanha ficou ainda mais evidente com manobras militares sendo conduzidas no Rio em alusão ao bicentenário da Independência ao mesmo tempo em que manifestantes celebravam a candidatura do presidente.
Um subprocurador avaliou que a situação é “grave” e abre a possibilidade do Ministério Público ou de algum partido apresentar uma ação de investigação eleitoral no TSE para apurar possível abuso de poder nos atos. “Nunca tivemos na história recente, desde a redemocratização, uma situação que se assemelha a essa”, disse, reservadamente.
O que pensam os especialistas? Para o secretário-geral da Abradep (Associação Brasileira de Direito Político e Eleitoral), Volgane Carvalho, o enquadramento de eventual abuso de poder político e econômico dos atos se daria menos pelo teor do discurso de Bolsonaro e mais pelo uso de dinheiro público para financiar a estrutura montada nas localidades em que o presidente falou.
“Se a gente olhar com a visão mais estreita, você vai ver que o evento foi feito em um caminhão privado, com sonorização privada. Mas se você olhar em um ângulo maior, se tem uma superestrutura montada com recurso público e em que pessoas foram atraídas para um desfile militar e apresentações cívicas e que convenientemente o discurso aconteceu no mesmo local, imediatamente após o encerramento do desfile”, disse.
Para Maíra Recchia, presidente do Observatório Eleitoral da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo), “Bolsonaro ultrapassou todos os limites possíveis”. “Especialmente da legislação eleitoral. Foi o uso da máquina pública na sua forma mais clássica para promover seus atos de campanha, nunca visto anteriormente de forma tão escancarada.”
“Hoje foi uma cena deplorável. Além de confundir propositalmente uma coisa com a outra, o sujeito ainda fez uma propaganda de seu desempenho íntimo. O Brasil não merece isso” – Igor Tamasauskas, doutor em direito do Estado pela USP
Ofensiva jurídica no TSE. A campanha de Lula, principal oponente de Bolsonaro na disputa pelo Planalto, afirmou que apresentará uma ação de investigação eleitoral por abuso de poder econômico e político. Para a coligação do petista, o presidente participou do evento como candidato, e não representante de um dos Poderes.
“O presidente usurpou a data comemorativa dos 200 anos da Independência para promover um verdadeiro comício eleitoral”, disse Angelo Ferraro, advogado de Lula no TSE. “Cometeu flagrante abuso de poder econômico e político, utilizando-se de recursos públicos e de uma grande estrutura montada para o desfile cívico-militar em favor de sua campanha.”
Fontes: Folha de São Paulo/UOL