Guerra na Ucrânia: Os possíveis riscos para a economia global e do Brasil caso o conflito se prolongue
A guerra na Ucrânia entrou em seu quinto mês sem sinal de que caminhe para uma solução e segue com reflexos negativos na economia global e no comércio entre as nações. A tendência de juros altos também tem alterado todo o fluxo de recursos no mercado financeiro.
Neste domingo (26/6), enquanto o G7 (grupo das sete maiores economias do mundo) se reúne na Alemanha, a Rússia lançou novos ataques com mísseis contra a Ucrânia.
A capital ucraniana Kyiv foi bombardeada. Uma pessoa morreu depois que um prédio residencial foi atingido e parcialmente reduzido a escombros.
O prefeito de Kyiv, Vitaliy Klitschko, chamou os ataques, ocorridos no dia de abertura da cúpula do G7 e antes da reunião da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar ocidental) de uma “tentativa de intimidar os ucranianos”.
Na Alemanha, líderes compartilharam o objetivo de cortar “oxigênio da máquina de guerra da Rússia”, disse o presidente do Conselho Europeu, o belga Charles Michel.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, também pediu unidade ? tanto no G7 quanto na Otan ? diante da invasão da Rússia.
Em seu discurso na noite de sábado (25/6), o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky disse que a guerra havia entrado em um “estágio moral e emocionalmente difícil”.
Também no sábado, a Rússia assumiu o controle total de Severodonetsk ? a principal cidade do leste ucraniano que tem sido palco de semanas de intensos combates.
Não parece haver, portanto, qualquer perspectiva de um fim próximo para o conflito.
E uma declaração recente do chefe da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg, jogou ainda mais incertezas no horizonte.
Em entrevista ao jornal alemão Bild, ele afirmou que “precisamos nos preparar para o fato de que pode levar anos. Não podemos desistir de apoiar a Ucrânia”.
Ciente das consequências danosas para a economia, ainda acrescentou: “Mesmo que os custos sejam altos. Não apenas pelo apoio militar, mas também pelo aumento dos preços da energia e dos alimentos.”
A afirmação reforça um quadro já bastante negativo. Na visão de economistas, mesmo que o conflito terminasse hoje os reflexos globais seriam sentidos por um bom tempo, para a reorganização do comércio, a retomada da normalidade na oferta de produtos e o controle da inflação.
Já as consequências de um prolongamento maior da guerra, como sugere o chefe da Otan, são difíceis de prever. Na visão de analistas, há tendência de manter preços altos de algumas commodities, principalmente agrícolas, e a situação de aperto monetário por mais tempo.
A invasão da Ucrânia pela Rússia em 24 de fevereiro pegou a economia global no contrapé ? quando se vislumbrava o início de uma recuperação passada a pior fase da covid-19. O prolongamento da guerra tem potencial de levar as principais economias do mundo a uma recessão ou mesmo a uma “estagflação” (inflação mais alta combinada com baixo crescimento econômico).
Inflação segue persistente
O aumento generalizado de preços, que caracteriza processos inflacionários, não é uma novidade gerada pelo conflito no leste europeu. A pandemia da covid-19, que afetou produção e várias cadeias logísticas, já tinha jogado os índices nas alturas.
Dados mais recentes do Banco Central indicam que o acumulado do ano do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, principal índice da inflação) chegará a 8,8%, avançando sobre a previsão anterior, de 6,3%. Atingirá mais que o dobro do centro da meta, de 3,5%.
Para 2023, ano em que a meta é de 3,25%, o BC projeta inflação de 4%, ante aos 3,1% divulgados em março.
O controle da inflação por meio de elevação dos juros e sua manutenção em patamares altos afeta as perspectivas para a economia global.
“A guerra se prolongando piora o quadro de incerteza e caminharemos para uma estagflação global. Primeiro porque há forte pressão de custos sobre as empresas, dificuldade na oferta de bens agrícolas e tudo ao mesmo tempo em que o BC promove um forte aperto monetário”, explica Roberto Padovani, economista-chefe do Banco BV.
“Quanto mais tempo demora para controlar a inflação, [a situação] fica pior pelo efeito da indexação dos preços [reajuste de produtos e serviços que têm valores atrelados ao índice da inflação].”
O último relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) reforça o retrato inflacionário global. A expectativa do FMI é que, em dezembro de 2022, a inflação no acumulado de 12 meses no Brasil seja de 6,7%, valor abaixo das projeções do mercado.
Argentina e Turquia têm as piores previsões, com avanço de 48% e 52% nos preços respectivamente. O relatório também aponta inflação americana perto de 5,33%, a alemã em 4,7% e do Reino Unido em 7,6%, percentuais muito elevados para estes países.
Prolongamento do aperto monetário
A possibilidade de que os preços sigam pressionados pela guerra obrigará bancos centrais ao redor do mundo a manterem os juros altos por um período maior.
No Brasil, o BC elevou a Selic a 13,25% ao ano, o maior nível desde dezembro de 2016. A ata foi lida pelo mercado como indicativo de nova alta em agosto, entre 0,25 e meio ponto percentual, e na sequência um período prolongado de estabilidade.
A piora inflacionária também levou o Fed, o banco central dos Estados Unidos, a subir a taxa em 0,75 ponto percentual ? desde 1994 não ocorria alta dessa magnitude.
Na visão do economista-chefe da Necton Investimentos, corretora do banco BTG Pactual, o efeito dos juros altos no controle da inflação é pequeno pela característica atual do processo de elevação dos preços.
“Como é uma inflação de oferta [produtos e serviços], e não de demanda, os juros têm menos efeito sobre a inflação e precisam permanecer elevados por mais tempo, com consequências ruins na economia”, explica André Perfeito.
Roberto Padovani, do banco BV, faz coro: “O processo atual de aperto monetário na tentativa de controlar a inflação é doloroso porque demora e tem custo alto para todos. O prolongamento da guerra na Ucrânia só piora o cenário e pode deixar a Selic elevada por muito tempo.”
Recessão à vista
O objetivo dos juros altos é derrubar a inflação, o que só é possível contendo a demanda e portanto deprimindo a atividade. O desempenho do PIB brasileiro no primeiro trimestre avançou 1% sobre o período imediatamente anterior. Na comparação anual, frente a 2021, cresceu 1,7%. Os economistas olham os dados com cautela porque veem os efeitos da guerra, iniciada no final de fevereiro, ainda pouco presentes na atividade.
“Tudo vai afetar o crescimento global daqui em diante. Vamos entrar em uma fase de desaceleração econômica com crédito mais caro e tensões geopolíticas derrubando a confiança. O quão grande ninguém sabe”, comenta Padovani. Na visão do economista, o PIB pode fechar o ano a 1%. “Em 2023 começaremos fracos, o Brasil e o mundo todo. Vejo o Brasil crescendo zero.”
A queda da atividade econômica prevista para este ano afeta o mundo todo, assim como uma desaceleração projetada para 2023. O Banco Mundial prevê que o crescimento global caia de 5,7%, em 2021, para 2,9% este ano, “significativamente abaixo” dos 4,1% previstos em janeiro. A instituição já fez seu alerta para o risco de um cenário adicional de estagflação.
Commodities agrícolas sem espaço para mais alta
O petróleo e as commodities agrícolas foram os principais vetores da alta dos preços globais neste ano, dada a relevância da Ucrânia e da Rússia em alguns produtos. A Ucrânia é responsável pela produção de 17% do milho disponível no mercado mundial. Juntas, Rússia e Ucrânia exportam quase 30% do total de trigo consumido mundialmente. A região é grande produtora de fertilizantes, com o Brasil na posição de maior importador do insumo pronto e também de componentes como nitrogenados, fosfatados e potássicos.
A boa notícia, destacada por André Perfeito, da Necton, é que mesmo o prolongamento da guerra não será capaz de fazer com que os preços subam muito mais. “Permanecerão elevados, o que já é ruim, mas não vejo espaço para que continuem subindo de valor. E mesmo que a guerra termine logo, é importante lembrar que a queda nas cotações será lenta, demora para reorganizar a produção e a logística”, explica, acrescentando que só o petróleo teria condições de exibir uma queda mais rápida na cotação.
Petróleo e derivados — corrida pelo ajuste da oferta
O barril de petróleo do tipo Brent, que em fevereiro custava perto de US$ 100, chegou a ultrapassar a barreira dos US$ 130 ao longo dos meses de conflito e hoje está cotado em torno de US$ 114, no contrato com vencimento em agosto.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), os russos são o terceiro maior produtor e exportador de petróleo do mundo e o maior exportador de gás natural. As restrições impostas pelo Ocidente à compra do produto russo derrubaram a oferta e levaram à alta na cotação com reflexos nos custos logísticos e na inflação.
“No petróleo, como há capacidade ociosa em algumas regiões que permitem aumentar mais rápido a produção, diferente do que ocorre nas commodities agrícolas, a alta nos preços não foi tão grande como se esperava”, analisa Marcelo Nonnenberg, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), citando Arábia Saudita e mesmo a Venezuela, que podem elevar a produção para atender à demanda.
Na hipótese de que a guerra avance para 2023, ou, o que é mais provável na visão de Nonnenberg, tenha “um cessar-fogo, mas com situação duradoura de conflito”, os efeitos negativos no setor de óleo e gás serão menos intensos do que no de grãos e fertilizantes.
“Antes da guerra, o mundo já sabia da necessidade de reduzir o consumo de petróleo e derivados, e o conflito vai intensificar a transição para uma matriz energética mais limpa. No curto prazo, outros fornecedores vão atuar, como a Arábia Saudita, e no médio e longo o mundo vai consumir cada vez menos.”
Janelas de oportunidade para o Brasil
O pesquisador do Ipea lembra uma tendência que já vinha ganhando corpo nos últimos anos, mas que ficou ainda mais em evidência com a invasão da Ucrânia. Desde a guerra comercial China-EUA, agravada pelo protecionismo de Trump e os problemas de desabastecimento de produtos e insumos durante a pandemia da covid-19, tem ocorrido uma redução importante das cadeias globais de valor.
Todos os ganhos de eficiência e queda de custo de empresas globais, muitas delas americanas que compravam componentes no mundo asiático e transportavam para montar o produto final nos mercados consumidores, como Brasil e outros, passaram a ser questionados.
“Está tudo muito interligado, é um arranjo complexo com ganhos de eficiência, mas que mostrou, durante os anos de pandemia, que processos tão decentralizados e distantes têm riscos”, comenta o pesquisador do Ipea, lembrando que as fronteiras fecharam, a produção parou e a dependência dos asiáticos, em componentes eletroeletrônicos e insumos para a produção de farmacêuticos passou a ser um problema.
“O mundo começou a pensar não apenas na eficiência, mas também na segurança desta produção decentralizada. Agora a guerra da Ucrânia reforça esta visão ao afetar toda a logística na região, com navios e aviões tendo que refazer rotas, o que eleva custos e provoca atrasos.”
Na visão de Marcelo Nonnenberg, a tendência é que as empresas invistam na produção mais perto dos seus mercados, ainda buscando eficiência de custos, mas não apenas.
“Hoje a cadeia logística é muito complexa e vai ser revista. A América do Sul, e o Brasil em particular, pode se beneficiar atraindo investimentos, mas desde que ofereça estabilidade política, econômica e de regras, além de mão de obra qualificada”, comenta acrescentando que o país precisa se preparar para entrar em algumas cadeias de valor, como biocombustível, biotecnologia e indústria farmacêutica.
Ativos de risco perdem o brilho
Sem uma sinalização de que esteja perto de acabar, a guerra entre Rússia e Ucrânia, ao impactar a economia mundial, naturalmente se reflete também nos ativos listados na bolsa de valores.
A alta dos juros em diversos países e mudanças no patamar do câmbio são componentes importantes desta equação. Juros mais altos significam crédito mais caro e menor crescimento e venda das empresas.
“O movimento global de elevação dos juros, para controlar a inflação que já vinha alta e piorou com a invasão da Ucrânia, tirou o brilho dos ativos de risco. Este movimento deve permanecer por um bom tempo, afetando ativos em bolsa”, comenta Fabiano Godoi, sócio e diretor de Investimentos da Kairós Capital.
Segundo levantamento realizado por Einar Rivero com apoio da plataforma TC/Economatica, em dólar o Ibovespa, entre 23 de fevereiro e 20 de junho acumula queda de 13,4%, superior ao recuo de 9,79% do Índice Dow Jones, e de 13,03% do S&P500.
Na Nasdaq, bolsa de tecnologia americana, o tombo é ainda maior, de 17%. Na visão de Godoi, com a Selic saindo de 2% ao ano para os atuais 13,25%, o custo de oportunidade de se investir em ativos de risco, como bolsa, ficou muito alto.
A fuga intensa de capital de países emergentes na direção das principais economias, outra consequência comum em situações de forte incerteza, desta vez será amenizada. Em cenários marcados por estresse e alta nos juros americanos ou europeus, o investidor tende a sangrar recursos de países como o Brasil para alocá-los em mercados considerados mais seguros.
“Se o juro brasileiro começasse a subir junto com o americano ou de outras economias, poderíamos perder capital. Mas o fato de termos iniciado antes o aperto nos dá um certo conforto, um colchão”, explica Godoi.
O equilíbrio destas forças ? com juro brasileiro nominal e real muito alto e o americano só agora começando a subir ? tende a manter o câmbio relativamente estável. Hoje, a cotação da moeda americana está perto de R$ 5,20 e deve orbitar, na visão dos analistas, em torno de R$ 5 ao longo dos meses. “Como exportamos commodities, entra mais dinheiro pela via do comércio. E, como juro está alto também, atrai capital. Mesmo a instabilidade que atrai para ativos e mercados mais seguros, não acredito que jogue o real muito para baixo”, comenta André Perfeito.
Fonte: BBC News/Imagem: Getty