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Governo Lula e militares: como será essa relação?

BBC News – Depois de mais de uma década de episódios de intromissão indevida na política, as Forças Armadas brasileiras devem ser devolvidas à atribuição constitucional de defesa do território nacional. Para que essa redesignação institucional seja eficaz, princípios como hierarquia e disciplina precisam ser enfatizados e fortalecidos. Mais difícil é prever como se comportarão as próprias Forças – Marinha, Aeronáutica e, sobretudo, Exército – diante desse rearranjo.

Esse é, com matizes e nuanças, o diagnóstico de sete pesquisadores e especialistas em defesa ouvidos pela BBC News Brasil a respeito da relação entre o futuro governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e as Forças Armadas. As diferenças entre os entrevistados residem menos na descrição do quadro atual e mais na interpretação do contexto político e histórico que permitiu a volta da expressão “crise militar” ao noticiário quase 30 anos após o restabelecimento da democracia no país.

Nos últimos quatro anos, o protagonismo verde-oliva no governo foi sublinhado inúmeras vezes, a começar pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, que cunhou a expressão “meu Exército”. O maior símbolo desse vínculo foi o aumento do número de militares da ativa e da reserva em cargos e funções civis na burocracia federal desde a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto. Em 2020, um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 6.157 servidores oriundos das três Forças nessa condição.

Para o presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), Eduardo Svartman, a identificação entre Bolsonaro e militares não foi casual, mas tampouco resultou de uma trama conspiratória. “Em política, todo mundo conspira sempre. É preciso entender a ascensão de Bolsonaro e de outros líderes de extrema-direita depois de 2018 nos marcos de uma crise do sistema político”, afirma o professor do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Para Svartman, os protestos de rua em junho de 2013, a reeleição por pequena margem da presidente Dilma Rousseff no ano seguinte, a contestação do resultado eleitoral pelo PSDB e a Operação Lava-Jato contribuíram para fragilizar as instituições políticas. “O fato é que os militares não estavam no centro da política antes do segundo governo Dilma”, afirma.

O professor titular de Antropologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Piero Leirner identifica uma ação consciente de uma geração de altos oficiais para “tomada de parte do Estado por meio da utilização de Bolsonaro como um biombo”. De acordo com o pesquisador, tiveram um papel importante nesse processo generais como Augusto Heleno, Eduardo Villas Boas e Sergio Etchegoyen. “Eles estruturaram e pavimentaram a candidatura Bolsonaro e depois estabeleceram uma central de controle”, assegura.

De acordo com Leirner, “a ideia de que houve uma aliança voluntária e individual por parte de generais que volta e meia são caracterizados como ‘bolsonaristas’ foi uma dissimulação”. Na realidade, opina, existiu uma “operação coletiva” executada “como uma cadeia de comando”.

O jornalista e escritor Fabio Victor, autor de Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro (Companhia das Letras, 2022), afirma que as distintas gerações de militares têm em comum uma formação profissional que define o golpe civil-militar de 1964 como “contra-revolução democrática”. Essa mentalidade é mais arraigada entre os mais antigos e atenuada entre os mais modernos, na mesma proporção do entusiasmo por Bolsonaro. O anticomunismo e o antiesquerdismo continuam sendo, porém, um fator fundamental do ideário militar, dos altos escalões à tropa. “Mesmo os mais jovens, que esperavam por uma terceira via, optaram por Bolsonaro mais uma vez ao terem de escolher entre ele e Lula”, resume.

Em abril de 2022, durante encontro com sindicalistas da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Lula disse que, uma vez eleito, pretendia “desmilitarizar” o governo. “Nós vamos ter que começar o governo sabendo que nós vamos ter que tirar quase 8 mil militares que estão em cargos, pessoas que não prestaram concursos”, advertiu. O professor da Universidade Católica de Pernambuco e doutor em Ciência Política Antonio Henrique Lucena Silva afirma que a principal medida de afirmação de autoridade do futuro governo na área militar – a nomeação de novos comandantes – tende a transcorrer de forma tranquila e profissional.

Não se pode dizer o mesmo, adverte o pesquisador, da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e das Polícias Militares nos Estados. “Lula deve provavelmente fazer um grande acordo no sentido de que, se alguém vai ser responsabilizado, deve ser Bolsonaro e não as Forças Armadas. Pode-se utilizar a desculpa de que ele sempre se colocava como comandante-em-chefe, ‘um manda e outro obedece'”, prevê.

Para Ana Carolina Assis, doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a maior mudança sob Lula deve ficar por conta da redução do número de ministérios ocupados por militares. De acordo com a pesquisadora, o compromisso das Forças Armadas como um todo é com o Estado e não com governos específicos. “O novo governo não deverá isolar a instituição e comprometer-se a adotar diálogo, mesmo com a anunciada nomeação de um civil (José Múcio Monteiro) para o Ministério da Defesa”, completa. A possibilidade de oficiais expressarem opinião política ou diferenças em relação ao governo existe, afirma Ana Carolina, mas é considerada “fora da conduta habitual da instituição”.

Autora de A cruz haitiana: como a Igreja Católica usou o seu poder para esconder religiosos pedófilos no Haiti (Tagore, 2020), a jornalista Iara Lemos afirma que todos os altos oficiais com quem tem conversado preveem um período de mais disciplina e não o contrário. “Para eles, separar a política dos quartéis, como fizeram desde o fim da ditadura, é o que precisa ser feito”, sintetiza. O futuro governo deve encontrar na Região Sul o ambiente mais hostil no interior das Forças Armadas, conforme a jornalista. “No Sul, nenhuma das Forças se mostra favorável às ações de Lula”, explica.

O professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Juliano Cortinhas afirma que o principal desafio de Lula é reforçar o Ministério da Defesa como órgão de execução técnica de políticas de defesa, com carreira funcional específica, ao qual as três Forças devem ser subordinadas. Ele compara o caso brasileiro aos de Reino Unido – 150 mil militares e 58 mil civis lotados na Secretaria de Defesa, equivalente ao Ministério da Defesa brasileiro – e França – 200 mil militares e 60 mil civis no Ministério da Defesa. No Brasil, há 370 mil militares na ativa em 2022, enquanto o Ministério da Defesa abriga 1,5 mil servidores civis.

“Esses dois países (Reino Unido e França) têm economias semelhantes à nossa, poderio militar muito superior e praticamente metade do efetivo militar. No mundo inteiro, a curva de pessoal militar está caindo porque o número de equipamentos está aumentando”, argumenta. Segundo Cortinhas, no Brasil, Forças Armadas menores e profissionais deixariam de ser uma ameaça à democracia. “Esse processo não vai se dar do dia para a noite, mas passa pelo fortalecimento do Ministério da Defesa”, sugere.

Mais uma amostra de como as relações entre os militares e o futuro governo Lula deverão ser complexas ocorreu nesta semana.

A equipe de transição do petista articulou para que os novos chefes das três forças militares fossem trocados antes da posse de Lula, no dia 1º de Janeiro de 2023, como prevê a tradição quando há mudança no chefe do Executivo.

Entretanto, até agora, apenas a troca do comando do Exército foi oficializada. Saiu o general Marco Antonio Freire Gomes e foi nomeado o general Julio Cesar Arruda. Há expectativa de que o comando da Aeronáutica também seja trocado nos próximos dias.

Na Marinha, porém, não houve acordo e o almirante Marco Sampaio Olsen, indicado pela equipe de Lula para comandar a força, só assume o comando da Marinha após a posse do petista.

Nesse sentido, um dos sinais preocupantes emitidos pela Equipe de Transição, de acordo com o professor da UnB, foi a inexistência de um Grupo de Trabalho de Defesa. No Relatório da Transição divulgado na quinta-feira, o termo “Ministério da Defesa” é citado em último lugar entre os 12 ministérios, secretarias ou órgãos com status de ministério da configuração Defesa da Democracia e Reconstrução do Estado e Soberania. Do ponto de vista operacional, o documento atribui à pasta pouco mais do que um papel auxiliar do Ministério da Justiça no combate à proliferação de armas.

“A única agenda do governo eleito em matéria de Defesa, até o momento, é restabelecer a disciplina, baixar a temperatura. O ministro anunciado tem agido nesse sentido, apesar das manifestações em frente a quartéis e das declarações de militares da ativa, que são proibidas”, sintetiza Svartman. Ele situa as decisões de nomear futuros comandantes das Forças com base no critério de antiguidade e de não criar Grupo de Trabalho de Defesa na equipe de transição como parte dessa lógica de distensionamento. “Dependendo de como for equacionado, esse é também um problema para o futuro. Como será a política de defesa do novo governo? Como serão as relações civis-militares? Seria importante que isso fosse debatido publicamente”, argumenta.

Fonte: BBC News

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