Enquanto vê pedidos para abertura de concursos públicos negados pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), a Funai (Fundação Nacional do Índio) chegou neste ano ao seu menor quadro de funcionários permanentes desde 2008.
Documentos aos quais a Folha teve acesso mostram que apenas 4 em cada 10 cargos do órgão estão atualmente ocupados. De um total de 3.700 postos, cerca de 1.400 têm servidores permanentes em atividade, enquanto o restante encontra-se vago —soma-se a isso um contingente de 600 trabalhadores temporários, contratados após uma ordem do STF (Supremo Tribunal Federal).
A gestão Bolsonaro já negou dois pedidos para realização de concursos feitos pela fundação (em 2019 e 2020) e tem mais dois ainda em análise pelo Ministério da Economia.
Em 2019, a pasta negou o pedido afirmando que “as atuais diretrizes do Poder Executivo Federal apontam pela impossibilidade de autorização de novos concursos públicos em face da atual situação fiscal do país”.
Segundo uma nota técnica da Funai, o Ministério da Justiça chegou a insistir com o pedido junto à pasta do ministro Paulo Guedes. Sob o mesmo argumento, a equipe econômica reiterou a negativa.
Procurada, a Economia não respondeu aos questionamentos da reportagem e afirmou que “não comenta demandas relacionadas a processos seletivos”.
Servidores da Funai ouvidos sob condição de anonimato afirmam que a falta de recursos é hoje um dos maiores obstáculos para a atuação do órgão, o que inclusive dificultou as operações de busca do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, que desapareceram no Vale do Javari, no Amazonas.
Por sua atuação na região, a Funai foi uma das primeiras entidades a montar equipes de busca no local, já no segundo dia do desaparecimento, com grupos compostos por indígenas dos povos kanamari e matis.
Mas a falta de mão de obra dificulta as ações de fiscalização e combate a ações ilegais e o trabalho de campo junto a terras indígenas. Também diminui a segurança no trabalho dos servidores que atuam em campo, deixando-os muitas vezes sob riscos.
A base da entidade no Javari, por exemplo, já foi atacada a tiros mais de uma vez nos últimos anos. Em 2019, Maxciel, um servidor que atuava na Frente Etnoambiental do Vale do Javari foi assassinado a tiros em Tabatinga (AM).
Bruno Pereira era servidor licenciado da fundação. Ele atuou na coordenação geral da região, antes de ser deslocado para a coordenação de povos isolados, em Brasília.
Pediu licença da Funai em 2019, depois de ser exonerado após 14 meses no cargo. Entre outros motivos, a decisão foi tomada porque ele estava encontrando dificuldades para fazer o trabalho que achava correto, de acordo com pessoas que o conheceram.
O indigenista é um retrato de como a situação de insegurança era latente para quem atuava na região, com ameaças recorrentes de pescadores —um deles, inclusive, confessou ter participado do assassinato de Pereira e Dom.
A falta de força de trabalho é um panorama que vem se agravando nos últimos anos. Desde sua reestruturação organizacional em 2009, a Funai teve apenas dois concursos públicos aprovados pelo governo federal, um em 2010 e outro em 2016. Isso levou a queda do número de funcionários permanentes.
Em 2008, a entidade tinha pouco mais de 1.000 servidores do quadro permanente atuando na Amazônia Legal, número que chegou a mais de 1.300 em 2013. Atualmente, são menos de 700.
Para tentar mitigar o prejuízo, a Funai tem recorrido cada vez mais ao empréstimo de servidores de outros órgãos. O gasto com essa modalidade cresceu de R$ 49 mil em 2018 para R$ 2 milhões previstos em 2022. Essas pessoas, em sua maioria, podem ser usadas apenas em funções administrativas, o que não resolve o problema nas atividades de campo.
Este ano, houve a contratação de mais de 600 funcionários com vínculos temporários —todos para a Amazônia—, o que fez o número total de trabalhadores da entidade crescer pela primeira vez em oito anos.
A contratação responde a uma determinação da Justiça para a atuação nas barreiras sanitárias criadas para controlar o impacto da pandemia do coronavírus sobre os povos indígenas.
Um levantamento feito por Helton Soares dos Santos, da Escola Nacional de Administração Pública, aponta ainda que, enquanto a força de trabalho da fundação diminui cada vez mais, a população indígena vem crescendo: de cerca de 400 mil no início do século, dobrou para mais de 800 mil em 2010.
O quadro de funcionários da Funai, por outro lado, fez o inverso: de 1992 a 2021, comparando o ingresso de novos funcionários com aqueles que deixaram a entidade, seja por aposentadoria ou por exclusão, a entidade perdeu mais de 2.300 trabalhadores.
A perspectiva é que essa tendência continue pelos próximos anos. Atualmente, cerca de 30% dos servidores da fundação estão em abono de permanência —ou seja, estão trabalhando, mas já podem se aposentar.
“Deve-se considerar que a maioria dos servidores possui idade acima de 50 anos, ou seja, a previsão de um ritmo maior de aposentadorias e a consequente redução no quadro de servidores da Funai resulta em preocupação com relação à continuidade do cumprimento das atividades”, alerta a nota técnica da entidade.
Fonte: Folha de São Paulo