General na RD Congo diz que Brasil deseja voltar a cooperar em operações de paz
A operação de paz enfrenta expansão de notícias falsas e atos hostis que provocaram mortes de boinas-azuis e outros militares.
ONU News, ON: A ONU News conversa com o general Otávio de Miranda Filho. É o novo comandante da força da Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo. Bem-vindo a nossa conversa.
Otávio de Miranda Filho: Muito obrigado. Eu agradeço a você e sua equipe pelo convite. É um prazer ter a oportunidade para falar com os nossos irmãos que falam a nossa língua tão querida: a língua portuguesa. Não só para os países de língua portuguesa, mas os que estão em outros países, mas são falantes do nosso idioma.
ON: Com que expectativa vai para o país que estava rodeado por um ambiente de otimismo com promessas de cessar-fogo. Há agora notícias de novos refugiados após confrontos…
OMF: Primeiramente, eu queria dizer da minha satisfação, e até mesmo do meu orgulho, por ter sido selecionado, fundamentalmente pelo Exército Brasileiro para concorrer a essa posição. E depois de um processo longo, e muito bem conduzido pela ONU, ter sido indicado e selecionado pelo nosso secretário-geral e ratificado pelo Conselho de Segurança para assumir essa posição de comandante da força na RD Congo. Estou ciente que esse, seguramente, será o maior desafio da minha carreira militar, que já leva 41 anos. Mas, ao mesmo tempo, eu me sinto extremamente motivado.
A minha expectativa é de poder fazer o melhor trabalho possível no intuito de apoiar a Organização das Nações Unidas por intermédio da Monusco, a nossa Missão na República Democrática do Congo, de modo a colaborar para trazer um pouco mais de paz e um pouco mais de qualidade de vida para os nossos irmãos congoleses.
ON: O Brasil tem lá dezenas de soldados de paz. O batalhão da selva está adestrando outros boinas-azuis. Mas o que Brasil tem para oferecer nesta situação de insegurança que vai evoluindo e parece imprevisível na RD Congo?
OMF: Hoje, o Brasil colabora com a Monusco com uma equipe móvel de treinamento de operação em ambiente de selva. É uma equipe relativamente pequena, mas com uma efetividade muito grande. O resultado do trabalho dessa equipe é reconhecido não apenas no Congo, mas internacionalmente.
Já há um pedido hoje da Tanzânia para que nós enviemos uma equipe similar àquele país para fazer o treinamento das tropas tanzanianas antes elas sejam desdobradas em missões de paz no continente africano, muito particularmente na RD Congo.
Temos alguns oficiais também de alto nível participando do Estado-maior, na Brigada de Intervenção, em outros batalhões, como por exemplo no batalhão uruguaio, no próprio quartel-general da Monusco em Goma. Mas o Brasil gostaria de colaborar muito mais.
Nós temos hoje, já certificado pela ONU no nível 2, um batalhão em condições de ser de desdobrado. Estamos trabalhando esse ano com uma possibilidade de visita de certificação das Nações Unidas, por volta de julho ou agosto, com uma companhia especializada em operações em ambiente de selva.
É claro que há um desejo muito forte do segmento militar de voltar a participar de missões de paz. Haja vista que nós tivemos uma participação de muito êxito durante 13 anos no Haiti, que nos trouxe uma expertise que nós não gostaríamos de perder com o passar do tempo. Mas, não só no Brasil como em outros países, esse é um processo político. É uma decisão política não é uma decisão puramente militar.
No ambiente militar, nós estamos prontos para desdobrar tanto um batalhão, quanto uma companhia especializada em operações em ambiente de selva. Restam as tratativas entre a Organização das Nações Unidas e o governo brasileiro para que isso possa ser efetivado, mas nós temos um desejo muito grande de voltarmos a colaborar com a ONU em operações de paz.
ON: O Haiti, como falou, foi um exemplo onde a presença brasileira teve um papel importante no processo de estabilização. Agora vai para a RD Congo, onde atua a Brigada de Intervenção, a única numa missão da paz com o calibre que tem na África. Como é que espera usar esses recursos de uma maneira diferenciada neste congolês? São mais de 100 grupos armados no terreno.
OMF: A FAB, como nós chamamos, ou a Força Intervention Brigade, é uma tropa altamente especializada como uma grande capacidade. É uma reserva nas mãos do comandante da força para ser usada em situações especiais. Nesse exato momento, por exemplo, certamente você tem ciência de um ataque que houve ao norte da província de Kivu, infelizmente provocando a morte de mais de 40 civis, inclusive mulheres e crianças.
A FAB está operando de forma muito coordenada com o Exército congolês no sentido de dar uma bosta a esse ataque, que chocou não só o povo congolês, mas a toda a comunidade internacional. É uma tropa altamente qualificada que nós vamos sempre, com muita parcimônia e dentro daquilo que está previsto no mandato da ONU, e de acordo com as diretrizes da representante especial do secretário-geral para a Monusco.
ON: General, o sr. falou de interesse de países em ter seus exércitos com este componente de atuação na selva um pouco mais afinado como Tanzânia e Uruguai. E com países lusófonos, o que o Brasil pode dar e receber na área militar para as missões de paz?
OMF: Nós temos, no Brasil, um Centro Conjunto de Operações de Paz, o Cecopab, que é um dos centros de operações de paz mais laureados, mais premiados e mais reconhecidos pela Organização das Nações Unidas. Um pessoal de alta qualidade e com uma grande experiência internacional, que vem colaborando com a ONU no treinamento e na certificação não só de indivíduos, mas também de tropas sempre que solicitado. Então, o nosso Cecopab está completamente aberto e à disposição dos nossos países de língua portuguesa que queiram enviar integrantes de suas Forças Armadas com previsão de desdobramento em missão de paz para fazer o treinamento no Brasil. Também há possibilidade de se costurar um acordo bilateral de maneira enviarmos uma equipe móvel de treinar, como é que temos hoje no Congo, para qualquer um dos nossos países de língua portuguesa, no sentido de assessorar, de treinar ou de especializar militares para operações de paz sob a égide da ONU.
ON: Somente sob a égide da ONU ou, por exemplo, no caso de Moçambique com terroristas no extremo norte existe alguma interação ou não?
OMF: O Brasil não tem a tradição de realizar esse tipo de treinamento fora do ambiente ONU. O que não significa que não seja possível. Isso pode ser tratado nas reuniões bilaterais. Existe uma reunião bilateral que ocorre, a cada dois anos, entre Brasil e Moçambique. Um ano no Brasil e dois anos em Moçambique e assim há um revezamento. Havendo interesse do Exército moçambicano, isso pode ser costurado nessa reunião bilateral de Estado-maior de maneira que o país possa receber esse apoio de treinamento.
ON: Sei que esteve antes em Moçambique e já teve interação com os moçambicanos. Quando ouve falar do conflito (de terroristas) e, principalmente, que há ramificações com áreas naquela região toda, que vão até a RD Congo, isto lhe aumenta a responsabilidade?
OMF: Sem dúvida. Hoje eu conheço oito países dentro do continente africano. Eu atuei como observador militar e membro do Estado-maior do comandante da força na Unmis, que era a missão da ONU para o Sudão, antes da divisão do país. Então, eu tenho um carinho muito especial pelo continente africano. Até porque as minhas origens estão no continente africano. Eu digo, sem sombra de dúvida, que a origem da maior parte da população brasileira e está ali na África, muito particularmente na RD Congo. Então, existe sempre um interesse muito grande do Brasil em cooperar.
O governo brasileiro, em momentos anteriores, já lançou uma campanha de aproximação do Brasil com o continente africano que foi exitosa naquele momento. Pode ser que isso volte a acontecer, mas o Brasil e a África, eu não me refiro a um país específico, não somente os países de língua portuguesa como Moçambique e Angola, mas todos os demais, particularmente os da costa oeste que são nossos vizinhos do outro lado do Atlântico, há sempre um interesse muito grande do Brasil numa relação muito próxima com todos esses países tanto em termos políticos quanto diplomáticos, e no nosso caso, especificamente, em termos militares.
Nós temos uma colaboração muito forte com diversos países africanos. Um deles é Moçambique. Recebemos militares em nossas escolas de formação, muito particularmente na Academia Militar das Agulhas Negras. E enviamos oficiais brasileiros para se especializarem, aprenderem e conhecerem um pouco mais a realidade do ambiente africano.
ON: Agora, a questão da mulher. Vai para um ambiente do conflito, e dizem que os homens são os que provocam e não os conseguem resolver. A ONU tem defendido que a mulher em operações de paz e estabilização seria importante. Neste momento no Congo vai comandar dezenas de milhares de militares. Destes, menos de 10% são mulheres. Já pensou no ambiente que vai encontrar e pretende ter quando sair?
OMF: É uma das políticas mais fortes da ONU a inserção do segmento feminino nas missões de paz em um ambiente de igualdade. Eu sou um grande defensor dessa política.
Na minha última função no Brasil, eu comandei uma região militar que é um grande comando logístico e administrativo no interior da Amazônia, na Amazônia Oriental. Eu tenho cinco anos de experiência em organização militar em ambiente de selva. Ali, de um efetivo de 200 militares que trabalhavam diretamente no meu quartel-general, pelo menos 90 eram mulheres.
Quando estive no Sudão também trabalhei no ambiente multiétnico e multicultural, com uma grande quantidade de mulheres de todas as origens. No Brasil, eu comandei uma brigada, a 9ª. Brigada, durante um período de intervenção federal no Rio de Janeiro por causa da violência nas comunidades. Ali, também eu vi a importância do papel da mulher.
Quando você lança uma patrulha dentro de uma comunidade com dezenas de milhares de pessoas, e maioritariamente composta por mulheres, essa mulher dificilmente vai falar com um militar do sexo masculino. Mas, com grande facilidade ela se abre quando é abordada por uma outra mulher uniformizada. Por uma mulher fardada. Então, eu tinha por prática ter sempre pelo menos duas mulheres em cada patrulha, dentro das comunidades, para conversar com a população e ter um feedback sobre qual era a percepção da população a respeito daquilo que nós estávamos fazendo. Como nós estávamos sendo vistos.
Eu acho que essa experiência pode ser transportada para essa nova vivência que eu vou ter na RD Congo agora, utilizando o segmento feminino, utilizando as mulheres. Por que não no patrulhamento? No sentido de ter um link com a população local. Eu acho que as mulheres têm um papel fundamental a ser desempenhado, não apenas nos quartéis-generais, onde elas já têm demonstrado a sua capacidade sobejamente. Eu digo sempre que, em igualdade de condições, com o mesmo background, não há diferença entre o desempenho de uma mulher ou de um homem apenas quando se pensa em gênero.
A diferença vai estar na capacidade individual, mas somos absolutamente iguais. Então, eu espero contar com o apoio dessas mulheres maravilhosas também ali, na República Democrática do Congo, não apenas em funções administrativas nos quartéis-generais, mas também na ponta da linha colaborando com as nossas tropas desdobradas no terreno.
ON: E a outra questão é a tecnologia. Neste momento, a RD Congo tem um problema. Há um outro campo de guerra que é o da informação. A tecnologia da informação é usada para ataques hostis contra a ONU, e tivemos histórias há pouco tempo sobre o assunto. Está preparado para este ambiente? Como espera lidar com esta situação nova?
OMF: Nós temos observado, e você que acompanha muito de perto a situação, não só na Monusco como em todas as missões de paz no interior do continente africano, que transmite na Monusco. No último ano, ou talvez nos últimos dois anos, temos tido uma deterioração da visão da população em relação à presença da Monusco naquele país. Isso se dá por algumas razões. Uma delas é pelo tempo de emissão das ações mais de 20 anos de presença da Monusco dentro do Congo.
Uma segunda razão é pela expectativa que a população tem em relação àquilo que a ONU vai oferecer. A maior parte da população desconhece o mandato da ONU. Então, ela cria uma alta expectativa em relação à nossa presença ali. Ela espera que nós façamos coisas que não estão previstas no nosso mandato. Isso é uma desinformação. E, ao mesmo tempo, nós temos uma questão da guerra das fake news e da desinformação. Isso é algo contra o qual nós temos que lutar.
Então, eu acredito que nós tenhamos que implementar uma campanha de comunicação estratégica de alto nível, no sentido de mostrar para a população congolesa todos os benefícios que essa missão já tem conseguido produzir ao longo desses mais de 20 anos, que não são poucos. Talvez não estejam chegando ao conhecimento da população como deveriam chegar.
Temos também que combater essas fake news. Nós sabemos que têm diversas origens e diversas finalidades. Esse não é um trabalho para ser feito exclusivamente pelo segmento militar. Esse é um trabalho a ser feito de forma conjunta pela missão, como um todo. Nós como militares temos que trabalhar de mãos dadas com as diversas agências não governamentais, e com as agências da ONU ou não, que se encontram no país, no sentido de disseminar os benefícios que a missão tem trazido para o país de combater a desinformação e as fakes news de maneira a reverter essa percepção negativa que a população tem sobre a Monusco e sobre a presença da ONU na RD Congo. Infelizmente custa vidas.
ON: Diga, nos próximos minutos, como será a atuação da ONU neste país africano que já acolheu a maior missão de paz da ONU?
OMF: Eu disse inicialmente que a minha expectativa é a melhor possível. Estou muito motivado pela realização desse trabalho. Quando fui entrevistado, pelo general Diop, pela senhora Keita e pelo senhor Lacroix, ao término eu disse: eu não gostaria de ser o próximo force commander da Monusco no sentido de incrementar a minha carreira. Eles tiveram acesso ao meu currículo e sabem que, muito mais por uma benevolência de Deus do que qualquer competência que eu possa ter, eu já tenho uma carreira destacada.
Eu não gostaria de ser comandante da Monusco por uma questão financeira. Ao longo desses anos, Deus nos deu, a mim e minha família, muito mais do que merecemos. Eu gostaria de ser o comandante da força dessa missão porque eu acho que tenho algo a contribuir.
Eu gostaria muito de após um ou dois anos de presença nesse país, ao voltar para o Brasil, poder olhar para trás e dizer: o meu papel aqui não foi irrelevante. Eu deixo um país com um pouco mais de paz. E as pessoas com um pouco mais de qualidade de vida, dentro daquilo que era possível fazer pelo segmento militar, no apoio que ele dá às decisões políticas, que é aquele que realmente vai decidir resolver os problemas desse país.
Fonte: ONU News/Foto: Reprodução