Frase de Fernández retoma um dos mitos fundantes da argentinidade
Ao citar Octavio Paz de forma equivocada para, na verdade, repetir o trecho de uma canção de 1982 de um popular artista argentino (“LLegamos de los barcos”, de Litto Nebbia, um dos pioneiros do rock local), o mandatário tentava explicar seu “europeísmo” ao ilustre convidado da Casa Rosada. E repetiu uma narrativa tão amplamente difundida quanto preconceituosa, que invisibiliza a contribuição de indígenas e negros na história nacional.
A frase foi: “Os mexicanos saíram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós, os argentinos, chegamos dos barcos —barcos que vinham da Europa”. Fernández pediu desculpas depois. Afirmou que a diversidade argentina “era um orgulho” e que não havia tido a intenção de ofender ninguém.
Acontece que essa expressão do que seria, então, resultado de um viés inconsciente do presidente —e que o levou a optar por definir seu país a partir de uma percepção eurocêntrica com caráter de excepcionalidade— é um dos mitos fundantes da argentinidade. A noção de que o indígena ou o “selvagem” estão fora de fronteiras. E de que os negros tampouco integram a paisagem social.
Essa compreensão volta e meia mostra a sua força, em discursos originalmente pensados como positivos. Em 2018, o ex-presidente argentino Mauricio Macri, por exemplo, também assegurou que “todos” eram “descendentes de europeus”, durante sua participação no Fórum Econômico de Davos.
Agora como então, o flagrante escorregão logo se tornou bola reluzente para malabarismos políticos nos meios de comunicação e nas redes sociais, para defender essa ou aquela posição partidária.
Apesar das críticas, coletivos que se ocupam do tema, no entanto, testemunharam gestos de Fernández que, para eles, mostram disposição para confrontar a visão de um país 100% branco. Um desses grupos é o Diáspora Africana da Argentina, mais conhecido como Diafar.
E ali seus integrantes recordaram, ao conversar comigo e ainda sob a “surpresa” da infeliz citação, que na atual administração foi designada uma argentina negra, María Fernanda Silva, para a embaixada no Vaticano; ou que se criou a Comissão para o Reconhecimento Histórico da Comunidade Afro-Argentina, em novembro do ano passado.
Diafar é um coletivo que tem por objetivo, a partir de iniciativas artísticas e didáticas, a inclusão da herança negra nas esferas acadêmicas e cotidianas do país —nas estatísticas, no debate público—, para que ela seja entendida como parte do passado e do presente. E a missão de que negros também possam ser naturalmente vistos, veja só, como argentinos (porque é comum que sejam indagados sobre “de onde são” em seu próprio país).
Reportagem do jornal britânico The Guardian reuniu no mês passado iniciativas e postulados de pesquisadores afrodescendentes do Rio da Prata que propõem justamente uma compreensão mais completa das raízes da Argentina. Os investigadores se dedicam a recuperar partes importantes da história que ficaram soterradas por um processo nacional de embranquecimento.
Após a publicação do texto, a quantidade e o teor das mensagens de ódio recebidas por seu autor fizeram com que o jornalista, o argentino Uki Goñi, abandonasse suas redes sociais por uma semana.
O racismo habita entre nós em dobras perniciosas ou a céu aberto e a sangue frio, lá como cá. Mazelas que atravessam séculos e que determinam a vida das pessoas diariamente, em todos os âmbitos da sua existência, alimentam polêmicas fugazes que esvaziam a discussão do problema de fundo. Com o surgimento da próxima manchete, ela voltará para o baú.
Em meio ao tiroteio político e à gritaria da internet, já sabemos quem termina para trás, no chão.
(Com informações Folha de São Paulo)