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Finlândia viveu na Guerra Fria o que Ucrânia pode sofrer sob Putin

HELSINQUE | THE NEW YORK TIMES

Durante décadas, a Finlândia sobreviveu como uma democracia não ocupada e independente à sombra da União Soviética, após ceder ao Kremlin grande influência sobre sua política e manter uma delicada neutralidade durante a Guerra Fria.

Esse modelo —conhecido nos círculos diplomáticos como finlandização— está sendo invocado hoje como uma possível solução para o impasse sobre a Ucrânia, ideia que efetivamente neutralizaria sua soberania e possivelmente daria à Rússia uma nova esfera de influência durante mais uma era.

Mas para os finlandeses, e ainda mais para os ucranianos, não é uma ideia a se jogar levianamente na mesa de negociação, pois lembra o tipo de política imperialista do Velho Mundo que outrora reduziu os países menores do continente a peões em um jogo sobre o qual não tinham controle.

Se você perguntar aos finlandeses nas praças cobertas de neve de Helsinque, nos portos gelados, nos cafés de design nórdico e nas bibliotecas modernas o que eles acham da finlandização, a geração mais velha poderá olhá-lo com desconfiança e os mais jovens, com indiferença sobre uma ideia que para muitos pertence ao passado.

“Para os finlandeses isso tem um tom negativo”, diz Mika Aaltola, diretor do Instituto Finlandês de Relações Internacionais. “Tem a ver com um período muito difícil na história.”

Enquanto a política ajudou o país na borda do Ártico a evitar o destino dos países da Europa central e do leste, ocupados como partes do bloco soviético, a independência da Finlândia veio ao custo de engolir uma não pequena dose de autocensura e controle estrangeiro.

Isso mudou substancialmente depois da Guerra Fria, há mais de 30 anos, tornando finlandização um termo antiquado que não se aplica mais ao país que lhe deu o nome —onde é até considerado uma espécie de insulto.

A Finlândia hoje é membro da União Europeia, usa o euro e trata com os Estados Unidos e a Europa em termos de igualdade. Ela é elogiada pela falta de corrupção e o generoso estado assistencialista, e é profundamente ocidental, mantendo fortes parcerias com a Otan, embora não seja afiliada.

ameaça da Rússia à Ucrânia somente encorajou os finlandeses a discutir mais abertamente se a Otan faz sentido, e a oposição antes avassaladora está se desgastando. Mas eles também estão claramente cientes de que têm um relacionamento delicado a administrar com a Rússia, e tomam cuidado para não provocar desnecessariamente o presidente Vladimir Putin.

Mas isso ainda está muito longe das condições impostas ao país durante a Guerra Fria. O modelo veio à superfície novamente quando o presidente francês, Emmanuel Macron, foi indagado por um repórter durante sua viagem a Moscou para negociações diplomáticas se a finlandização era uma possibilidade para a Ucrânia. Ele respondeu: “Sim, é uma das opções sobre a mesa”.

Ele mais tarde tentou voltar atrás, mas a semente estava plantada na imaginação de alguns observadores ucranianos, mesmo que os próprios finlandeses a refutassem.

Continua sendo algo difícil de discutir, segundo Elena Gorschkow, 45, diretora de um sindicato. Enquanto ela falava, ao seu redor havia sinais da influência da Rússia, que governou a Finlândia de 1809 a 1917. Ela olhou para uma enorme estátua do czar Alexandre 2º, que emancipou os servos da Rússia, e para o prédio do governo e a catedral de Helsinque, construídos no estilo de São Petersburgo. Nas latas de lixo, cartazes amarelos diziam “Cuidado com a Rússia”, mostrando o rosto de Putin no lugar de um crânio sobre ossos cruzados.

Filha de pai russo e mãe finlandesa, Gorschkow disse que cresceu com finlandeses desconfiados de seu nome russo, e que sua mãe até hoje se recusa a falar sobre política em relação à Rússia.

Na Biblioteca Central Oodi em Helsinque, Matti Hjerppe, 69, afirma que a volta da palavra finlandização a faz rir. “Ela continua voltando. A mesma coisa sempre acontece”, diz, referindo-se ao impulso da Rússia de estender sua influência às terras ao longo de suas fronteiras.

Na verdade, o termo, originalmente cunhado nos anos 1960 pelos alemães (“Finnlandisierung”), ressurgiu pela última vez em 2014, durante a invasão da Crimeia pela Rússia, quando velhos participantes da Guerra Fria a propuseram como uma possível solução. (“Eles deveriam adotar uma posição comparável à da Finlândia”, escreveu Henry Kissinger no Washington Post, enquanto Zbigniew Brzezinski escreveu que “o modelo finlandês é ideal para a Ucrânia”.)

Mas os finlandeses disseram que o modelo recompensou os políticos que fizeram o jogo da Rússia, ostracizou os que recusaram a influência de Moscou e introduziu uma safra de agentes secretos “soviéticos” no país que trabalhavam estreitamente com a elite finlandesa.

Aaltola não acha que a finlandização seria boa para a Ucrânia ou para a Finlândia, e embora tenha dito que o período está firmemente inscrito na história do país, readotá-lo em outro lugar na fronteira russa só poderia apressar sua volta. “Os finlandeses compreendem que o que acontece na Ucrânia não fica na Ucrânia.”

O perigo de conciliar Putin aparece com frequência na Finlândia, e na verdade seus habitantes afirmam que sua independência e imunidade a uma nova rodada de finlandização decorre do respeito de Putin por sua tradicional proeza militar e disposição a pegar em armas.

Os soviéticos tentaram aplastar seu vizinho menor em 1939, mas uma pequena força deteve o Exército Vermelho durante meses. Josef Stálin acabou ganhando a chamada Guerra do Inverno e tomou 11% do território finlandês, mas os soviéticos nunca ocuparam o país, que conservou a independência.

Diferentemente da Suécia, que está quase desarmada, a Finlândia se mantém bem provida no plano militar, tendo encomendado recentemente 64 jatos de combate F-35 dos EUA. O país tem um Exército de 180 mil pessoas e uma poderosa determinação nacional de se defender.

Com Folha de São Paulo

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