A decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), de mudar o formato de análise de processos de quebra de decoro foi usada pelo ex-presidente da Casa Eduardo Cunha (PTB) na ação judicial que, por ora, lhe garante o direito de disputar as eleições de outubro.
Apenas 23 dias separaram a medida adotada por Lira, em agosto de 2021, e o ingresso da ação por Cunha, em setembro. Os dois políticos foram aliados e lideraram o centrão em períodos distintos —Cunha de 2014 a 2016, e Lira, desde 2020. Ambos também apoiam a reeleição de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência.
Em agosto do ano passado, na abertura do julgamento que cassou o mandato de Flordelis, foi anunciada a decisão de Lira de que as ações por quebra de decoro parlamentar passariam a ser analisadas pelo plenário da Câmara por meio de projeto de resolução, não por pareceres do Conselho de Ética.
O que poderia parecer uma mera firula congressual na verdade embutia uma mudança relevante. Até então, o plenário da Câmara só poderia validar ou rejeitar um parecer do conselho —ou seja, no caso de recomendação de pena máxima, apenas cassar o mandato do parlamentar ou arquivar o parecer.
Ao votar um projeto de resolução, a Casa pode apresentar emendas que alteram completamente a recomendação do colegiado, aplicando assim, por exemplo, penas intermediárias.
Vinte e três dias depois do movimento de Lira, Cunha ingressou na Justiça Federal de Brasília com uma ação para anular a cassação de seu mandato, votada em 2016, em decorrência da revelação da Operação Lava Jato de que mantinha dinheiro na Suíça.
Na peça, o ex-presidente da Câmara arrolou Lira como sua primeira testemunha e, entre outros argumentos, elencou a decisão do atual líder da Casa.
“Essa decisão violou diretamente garantias individuais do autor […], tanto que o atual presidente da Câmara, Arthur Lira, remediou a tramitação dos processos de perda em plenário justamente mediante interpretação conforme à Constituição”, escreveram os advogados de Cunha na ação, afirmando que o então parlamentar deveria ter tido seu caso analisado pelo plenário por meio de um projeto de resolução.
Segundo os advogados, a antiga sistemática contrariou o devido processo legislativo, a soberania do plenário da Câmara de definir qual punição aplicar e o princípio da individualização da sanção.
A defesa de Cunha também elencou outras supostas irregularidades do Conselho de Ética, como uso ilegal de sigilo bancário e fiscal do parlamentar e acréscimos à acusação sem que ele pudesse se defender.
No último dia 21, o juiz Carlos Augusto Pires Brandão, do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), acolheu parte dos argumentos e suspendeu os efeitos da cassação de Cunha por meio de uma liminar.
Questionados pela Folha se trataram, em algum momento, pessoalmente ou por meio de interlocutores, da mudança na análise dos processos de quebra de decoro, Lira e Cunha deram respostas similares.
“Em nenhum momento, ou em qualquer tempo, fui procurado pelo ex-deputado Eduardo Cunha ou qualquer outra pessoa para tratar dos fatos levantados”, afirmou Lira, por meio de sua assessoria. Ele não respondeu à pergunta sobre por que decidiu mudar o formato de análise de processos de cassação.
“Simplesmente nunca tratei desse assunto diretamente ou por meio de terceiros com ele nem com qualquer outra pessoa”, afirmou Cunha, que pretende se candidatar a deputado federal por São Paulo.
Um dos políticos mais poderosos do país entre 2014 e 2016, ele —então no MDB— foi o principal líder na Câmara na articulação do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e acabou sendo afastado da presidência da Casa pelo Supremo Tribunal Federal pouco depois da queda da petista.
Cunha estava nessa situação quando foi cassado pelo plenário da Câmara com os votos de 450 de seus 512 colegas, em setembro de 2016. A decisão o tornou inelegível até 2027. Pouco mais de um mês depois, foi preso por ordem do então juiz federal Sergio Moro, ficando em regime fechado até março de 2020.
Após pedir, em setembro do ano passado, a suspensão da decisão da Câmara que o tornou inelegível, Cunha sofreu uma derrota em primeira instância.
Decisão da 22ª Vara da Justiça Federal do DF afirmou que o processo disciplinar contra o ex-deputado teve “regularidade formal, com a observância dos preceitos inerentes ao contraditório e à ampla defesa”.
“O autor foi comunicado de todos os atos processuais desde a instauração do feito, inclusive dos pareceres exarados e das sessões do Conselho de Ética e demais órgãos. O autor teve oportunidades e efetivamente exerceu seu direito de defesa, desde o oferecimento de defesa prévia e inclusive intervenções durante sessões”, escreveu o juiz Ed Lyra Leal.
Cunha recorreu ao TRF-1, e o processo foi distribuído para o juiz Carlos Augusto Pires Brandão, a pedido da defesa, já que ele ficou responsável por outras ações apresentadas pelo ex-deputado.
Brandão foi um dos juízes de TRFs que se candidataram à lista quádrupla enviada para Bolsonaro para a indicação de duas vagas abertas no STJ (Superior Tribunal de Justiça), mas acabou ficando de fora da relação.
Ele tinha o apoio do ministro do STF Kassio Nunes Marques, indicado à corte por Bolsonaro.
Na liminar que permite por ora a candidatura de Cunha, Brandão registra que o ex-parlamentar pretende suspender os efeitos do texto da Câmara que declarou sua inelegibilidade.
A Câmara, porém, apenas declarou a perda do mandato. A inelegibilidade é uma consequência da lei complementar 64/1990, que determina essa punição a congressistas cassados por quebra do decoro parlamentar.
Em outro ponto, o magistrado afirma que acréscimos feitos pela acusação no parecer final “tornam mais plausível a alegação de instabilidade da acusação e, assim, de todo o processo que resultou na sua inelegibilidade e na proibição de ocupar cargos públicos federais”. Essas alegações, porém, já foram rejeitadas pelo Supremo no mandado de segurança 34.327/2016.
A liminar pode se chocar com o princípio da coisa julgada, que tem por objetivo dar segurança jurídica à sociedade e impedir, salvo raras exceções, a reanálise pela Justiça de um tema já decidido por ela.
O Ministério Público Federal pediu ao juiz que reconsidere a decisão ou a leve a julgamento para a quinta turma do TRF-1.
Segundo a Procuradoria, a opção entre parecer e projeto de resolução sempre foi matéria debatida na Câmara, “sendo certo que o entendimento atual [de projeto de resolução] não pode retroagir à época dos fatos”.
Procurado, o juiz Carlos Augusto Pires Brandão não se manifestou.
Cunha já registrou seu pedido de candidatura a deputado federal pelo PTB-SP. Ele declarou um patrimônio de R$ 14,1 milhões, 420% superior ao de quatro anos atrás, sendo 90% proveniente de dinheiro que mantinha na Suíça e que havia sido repatriado ao Brasil no ano passado, ainda em um cenário de adversidade nos tribunais, para pagamento de reparações determinadas pela Justiça.
Fonte: Folha de São Paulo