Dilema ucraniano: aceno à Otan impede paz, mas guerra adia ingresso na aliança
O secretário-geral da aliança militar do Ocidente, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg, realizou uma visita surpresa a Kiev na última segunda-feira (29), e se reuniu com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Os líderes discutiram a ajuda financeira e militar à Ucrânia, que vem enfrentando sérias dificuldades no campo de batalha contra a Rússia, e voltaram a falar das perspectivas de entrada do país na aliança militar. O estreitamento da relação do Ocidente com a Ucrânia impõe dilemas que dificultam as negociações de paz.
Stoltenberg reconheceu que sérios atrasos no apoio a Kiev se traduziram em graves consequências no campo de batalha. Segundo ele, “a Ucrânia está em desvantagem há meses”. “Menos mísseis e drones russos foram abatidos e a Rússia tem conseguido avançar na linha da frente. Mas não é tarde demais para a Ucrânia prevalecer. Mais apoio está a caminho”, destacou o secretário-geral.
Ao falar sobre as perspectivas da entrada da Ucrânia na Otan, Jens Stoltenberg afirmou que “o lugar legítimo da Ucrânia é na Otan” e a cooperação entre a aliança militar e Kiev torna irreversível o caminho da Ucrânia para a adesão para “quando chegar a altura certa, a Ucrânia possa tornar-se um membro da Otan imediatamente”.
O secretário-geral observou, no entanto, que o convite oficial ainda não ocorrerá na próxima cúpula da aliança, que será realizada em julho, em Washington. A aprovação da adesão requer uma decisão consensual de todos os 32 países da Otan.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o presidente do Centro de Pesquisa Política Aplicada “Penta”, Vladimir Fesenko, afirmou que o processo de adesão à aliança tem resistência de países como Alemanha e, principalmente, dos EUA. De acordo com o cientista político, é quase um consenso que o ingresso na organização não poderá se der enquanto a Ucrânia estiver em guerra com a Rússia.
“Os EUA partem de uma lógica muito simples. Em perspectiva, a Ucrânia será membro da Otan, mas enquanto ocorrer a guerra de grande escala com a Rússia, a Ucrânia não receberá o convite para aderir à Otan, para evitar o risco de um conflito militar entre a Otan e a Rússia. E isso representa um risco de guerra nuclear”, afirma.
“A Ucrânia quer (entrar na Otan, e isso não é só o Zelensky, mas muitos ucranianos, uma absoluta maioria dos ucranianos, segundo pesquisas sociológicas, querem que a Ucrânia se torne um membro da Otan. Na Ucrânia isso é visto como uma garantia de que a atual guerra não se repetirá no futuro. Muitos ucranianos consideram, e muitos especialistas corroboram com essa visão, que a Rússia não atacaria um membro da Otan”, acrescenta Fesenko.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, por sua vez, reconheceu que a entrada do país na aliança só deve acontecer após o fim da guerra com a Rússia. “Na minha opinião pessoal, só estaremos na Otan quando vencermos. Não creio que durante a guerra seremos aceitos na Otan. Este é um risco para alguns membros da Otan, enquanto outros estão simplesmente céticos por causa disso”, disse o chefe de Estado.
A visita de Stoltenberg a Kiev, para o cientista político Vladimir Fesenko, é uma forma tentar “suavizar as divergências que existem hoje sobre o ingresso da Ucrânia na Otan”. De acordo com o analista, “o secretário-geral sabe que a Ucrânia quer muito entrar na Otan e ele sabe que os americanos, os alemães, e não só eles, são contra a entrada da Ucrânia em uma perspectiva de curto prazo, pelo menos em tempos de guerra”.
“Por isso ele quer encontrar um certo modelo de compromisso. Eu acho que agora o próprio Stoltenberg e outras figuras da Otan pensam no que poder ser feito para mostrar um progresso da Ucrânia na Otan, alguns novos passos, novos programas, para mostrar que a Ucrânia vem ativamente se integrando de facto à Otan, mas juridicamente isso só seria oficializado depois”, completa.
Para a Ucrânia, a entrada da Otan representa então o principal fundamento da doutrina de segurança do país no longo prazo.
“Na Ucrânia é muito popular a posição de que justamente o ingresso na Otan pode ser a única garantia confiável de não ter um novo ataque da Rússia na Ucrânia. Porque se a Ucrânia entrar na Otan, a Rússia não arriscaria atacar a Ucrânia para evitar uma guerra nuclear. Não é só o Ocidente que tem medo de uma guerra nuclear, mas a Rússia também”, analisa Vladimir Fesenko.
Da mesma forma, o consenso de que é inviável uma entrada da Ucrânia na Otan enquanto a guerra com a Rússia estiver em curso diminui os riscos de uma drástica escalada para uma confrontação direta entre Moscou e o Ocidente.
No entanto, os acenos e as expectativas de que após o fim da guerra a integração da Ucrânia na aliança militar ocidental é um processo irreversível gera um dilema central que justamente dificulta as perspectivas para que essa guerra tenha um fim no futuro próximo. E isso está ligado com a concepção central de segurança da Rússia e o que ela entende como garantias para uma relação não conflitante com o Ocidente.
No contexto atual, a posição da Rússia é de que o fornecimento de armas à Ucrânia interfere na possibilidade de resolução da guerra e envolve os países da Otan diretamente no conflito. Vale lembrar que a política do Zelensky de aproximação da Otan foi uma das principais motivações para a Rússia iniciar o conflito no país vizinho. Moscou entende que a expansão da aliança ocidental para perto das fronteiras da Rússia representa uma ameaça à sua segurança.
O presidente russo, Vladimir Putin, ao mesmo tempo em que classifica “absurdas” as alegações ocidentais de que a Rússia supostamente poderia atacar a Otan, argumentando que a “operação militar” na Ucrânia serve para proteger o povo russo que vive nos territórios ucranianos, o chefe de Estado repetidamente criticou a política expansionista da organização.
O contínuo estreitamento dos laços entre a Ucrânia e a OTAN simboliza um dilema que impede o fim da guerra. Pois, como já foi sustentado pelo Kremlin nos últimos anos, a recusa de Kiev ingressar na aliança militar ocidental, ou seja, um status de “neutralidade” da Ucrânia, poderia ser um caminho para a paz. Por outro lado, Kiev entende a entrada na aliança como única forma de se proteger da Rússia no futuro.
“Se depois do colapso da União Soviética, como a Rússia propôs, eles [Ocidente] tivessem construído relações de segurança completamente novas na Europa, nada do que acontece hoje teria acontecido. Eles simplesmente teriam em conta os nossos interesses, sobre os quais falávamos ano após ano, na verdade, de década em década. Simplesmente houve uma desconsideração completa ignorância”, afirmou Putin no final de março.
Vale lembrar que o status de neutralidade da Ucrânia esteve justamente na mesa de negociações entre as delegações russa e ucraniana, em março de 2024, em Istanbul, que foi a primeira e única tentativa de diálogo após a guerra. Durante essas reuniões, teria sido assinado um acordo entre as partes sobre a neutralidade da Ucrânia, o que poderia garantir um armistício no conflito.
De acordo com Putin, o documento intitulado “Tratado de Neutralidade Permanente e Garantias de Segurança para a Ucrânia” foi assinado pela delegação ucraniana. No entanto, o presidente russo, ao revelar o documento em junho de 2023, alegou que Kiev descartou abruptamente o acordo que já havia sido assinado.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de Ciência Política da UFRGS, Fabiano Mielniczuk, especialista em estudos da Rússia e Leste Europeu, declarou que a ideia da neutralidade da Ucrânia já era uma condição que a Rússia tinha oferecido em dezembro de 2021 aos EUA e para a Otan no sentido de fazer um acordo de segurança mútua.
De acordo com ele, o princípio de neutralidade proposto por Moscou previa que eles aceitam a Ucrânia dentro da União Europeia, mas que não façam o mesmo em relação à entrada da Ucrânia na organização militar, “por conta da capacidade de destruição que a Otan teria contra o território russo”. Mielniczuk observa que “isso é tomado no Ocidente como uma ingerência da Rússia em um Estado soberano”.
As perspectivas de que aconteçam negociações de paz no atual cenário ficam em um completo impasse. Como afirma o cientista político Vladimir Fesenko, um dos principais argumentos, inclusive de políticos dos países Otan é de que “se partirmos da situação atual e falarmos que a Ucrânia será um membro da Otan, mas só depois do fim da guerra, então a Rússia pode manter a guerra interminavelmente”.
“Eu estou absolutamente convencido de que, enquanto a guerra estiver acontecendo, a Otan não dará passos para a entrada da Ucrânia, justamente para que essa guerra possa ter um fim, mas o que acontecerá depois, esta pergunta está em aberto”, completa.
Fonte: Brasil de Fato, por Serguei Monin/Edição: Rodrigo Durão Coelho/Imagem: X