Quando, assombrados pelos arroubos autoritários de Jair Bolsonaro, os juristas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, decidiram fazer um manifesto de apoio à democracia, não imaginavam que estavam produzindo um momento histórico, em simbologia e tamanho. Entre a parte interna e externa do tradicional prédio da São Francisco, erguido em 1827, mais de 8 mil pessoas se reuniram na manhã desta quinta-feira (11), num ato que durou mais de três horas, para a leitura de duas cartas em defesa da democracia, do estado democrático de direito e das instituições. Advogados, políticos, empresários, artistas e representantes de movimentos sociais participaram do evento – que terminou aos gritos de “Fora, Bolsonaro!” vindos do público que acompanhava a manifestação da rua.
Por ser dentro do prédio da São Francisco, o acesso ao ato foi restrito a convidados da universidade, dos movimentos e do grupo Prerrogativas, formado por advogados críticos à Operação Lava Jato e que ajudou a organizar o manifesto. Podiam circular apenas cerca de mil pessoas no edifício naquele dia, mas os organizadores estimavam que havia 2 mil no local. O primeiro evento do dia ocorreu no salão nobre da faculdade. Nomes dos mais diversos setores da sociedade discursaram e depois foi lida uma carta subscrita por entidades empresariais, embora os empresários fossem minoria no local. Entre os que subiram ao púlpito para discursar estavam o economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, o empresário Horácio Lafer Piva, a socióloga Neca Setubal, a presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) Patricia Vanzolini, a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) Bruna Brelaz, e o reitor da USP Carlos Gilberto Carlotti Junior.
Fraga, que participou do comitê que elaborou a carta dos empresários, disse que “as sociedades mais prósperas do planeta, onde reinam a liberdade, a solidariedade e a prosperidade, são democracias”. A primeira carta, lida no salão, englobava entidades como a Fiesp e a Febraban, mas seus presidentes, embora presentes, não se manifestaram. Dos membros da Fiesp, entidade na qual o apoio à carta não foi unânime, apenas Josué Gomes, que preside a entidade e é filho do falecido ex-vice-presidente José Alencar, compareceu ao ato.
Entre os políticos, nenhum discursou. Foi proposital: a organização não queria que se tornasse um evento partidário e não fez convites individuais a integrantes da classe. Do PT, estavam Fernando Haddad, Eduardo Suplicy, Aloizio Mercadante e Paulo Pimenta. Também estavam Orlando Silva (PCdoB), Márcio França (PSB), Marina Silva (Rede), Sâmia Bonfim (Psol), Tabata Amaral (PDT) e Guilherme Boulos (Psol). A ex-aliada de Jair Bolsonaro Joice Hasselmann, que se elegeu na esteira do bolsonarismo e hoje é deputada pelo PSDB, atravessou o salão nobre lotado depois do início do evento, acompanhada de assessores, e sentou-se num degrau perto do púlpito, aparentando entusiasmo com os discursos de líderes de movimentos sociais.
No momento da leitura da carta, ecoavam no exterior palavras de ordem proferidas por milhares de pessoas ao redor do prédio, entre estudantes, integrantes da sociedade civil e de movimentos, como a CUT. Não foi por acaso. O grupo 342 Artes, que faz mobilizações em prol do setor artístico, foi responsável pela cenografia e a sincronia do evento, sob a coordenação da cenógrafa Mari Stockler e da diretora de teatro Bia Lessa. Uma presença discreta no local foi a da cardiologista Ludhmila Hajjar, professora da Faculdade de Medicina da USP que foi sondada para ser ministra da Saúde de Jair Bolsonaro em 2021.
Por volta de 11h30, depois da leitura da carta dos empresários, os convidados desceram para o pátio da faculdade, rodeado por arcos que dão nome às Arcadas, que é como os alunos se referem ao prédio. Ali fora montado um palanque com vinte cadeiras para os acadêmicos eméritos da escola, para que fosse lido o manifesto dos juristas do Largo São Francisco. De tão cheio, o local não comportava a todos e muitos tiveram de subir aos andares superiores do prédio para assistir à leitura. Entre os juristas chamados ao palco estavam Fábio Konder Comparato, Luiz Eduardo Greenhalgh, José Afonso da Silva, que, aos 97 anos, foi amplamente ovacionado, e os ex-ministros da Justiça José Carlos Dias, José Gregori, Miguel Reale Junior, este último também um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Depois de um apelo para que não houvesse manifestações político-partidárias durante a leitura, a carta dos juristas foi então lida por Eunice de Jesus Prudente, professora da Faculdade Zumbi dos Palmares, Maria Paula Dallari Bucci, professora da Faculdade de Direito da USP; Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, ex-ministro do Superior Tribunal Militar, e Ana Elisa Bechara, vice-diretora da Faculdade de Direito da USP. Depois que eles deixaram o palco, subiram os membros do coral da USP para cantar o Hino Nacional, acompanhado pela cantora Daniela Mercury, posicionada em uma janela do terceiro andar do prédio, com vista para o pátio e para as Arcadas.
O grupo Prerrogativas, que ajudou a dar dimensão nacional ao evento, conectando os juristas da USP com os movimentos sociais e os artistas, sobretudo graças ao trabalho dos advogados Marco Aurélio de Carvalho e Raquel Preto, terminou o dia com a sensação de dever cumprido, não fosse por uma notícia frustrante. Enquanto celebravam o sucesso do ato num almoço na churrascaria Rodeio, nos Jardins, em São Paulo, souberam que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello havia declarado voto em Jair Bolsonaro. O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, e um dos membros mais proeminentes do Prerrogativas, externou sua consternação: “Acabei de bloqueá-lo no WhatsApp.”
Fonte: Revista Piauí