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Codevasf adota self-service de obra e máquina para desovar emenda parlamentar

Um par de botas em PVC sai por R$ 110, enquanto um caminhão com carroceria de madeira é avaliado em R$ 365 mil. Já o preço de uma ponte pode chegar a R$ 810 mil, e dois quilômetros de asfaltamento custam R$ 2 milhões.

Estes “itens” e seus valores constam de um catálogo da estatal federal Codevasf usado por deputados e senadores para escolher a destinação de suas emendas parlamentares aos seus redutos eleitorais.

Como uma peça de divulgação de uma loja de departamentos, o material preparado pela gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) traz fotos e preços de máquinas, implementos agrícolas, veículos, equipamentos, materiais e até obras de pavimentação que estão ao dispor dos congressistas.

Questionada, a Codevasf diz que os itens do catálogo “guardam relação com a missão e com os objetivos estratégicos da companhia”.

Criada na década de 1970 para realizar projetos de irrigação no semiárido brasileiro, a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) agora passou a ser uma grande distribuidora de bens e obras de pavimentação com direcionamento exclusivamente político.

A tabela de preços oferecida aos parlamentares consagra um modelo de escoamento de dinheiro público que deixa em segundo plano o planejamento, a qualidade e a fiscalização, abrindo margem para serviços precários, desvios, superfaturamentos e corrupção.

Intitulada “Catálogo 2022 – Máquinas, Implementos, Veículos, Equipamentos , Materiais e Serviços”, a publicação tem 36 páginas com quadros de itens e seus custos. É a terceira edição feita pela estatal (as versões anteriores tinham como referência 2021 e 2021/2022).

A lista traz uma explicação sobre os valores que lembra a linguagem dos sites de compra pela internet: “Os preços informados neste catálogo foram estimados com base em cotações e aquisições anteriores e podem variar em função de diversos fatores, como local de entrega, quantidades e momento da nova licitação/aquisição”.

Dividido por setores, o catálogo até traz alguns tópicos ligados à vocação histórica da Codevasf, como “agricultura irrigada” e “cisternas“.

Porém há produtos de áreas como “Economia Criativa – Corte e Costura”, “Panificação”e “Apicultura”. São listados, por exemplo, “baldes de inox para mel”, com preço de R$ 504, e “bota em PVC” a R$ 110 cada par.

O formato visual do segundo capítulo da publicação se assemelha ao material publicitário de uma concessionária de veículos ou equipamentos pesados.

A descrição dessa área de atuação também poderia constar em um documento de um órgão federal de infraestrutura: “essa linha de atuação objetiva corrigir problemas relacionados a locomoção, transporte, comercialização e segurança de pessoas e veículos que trafegam pelas vias públicas”.

Os preços dos veículos e máquinas pesadas variam de R$ 365 mil (caminhão toco com carroceria de madeira) a R$ 1,1 milhão (trator de esteira).

Conforme a Folha mostrou, na esteira da explosão de gastos com as chamadas emendas de relator, os valores com doações de máquinas, equipamentos e veículos a cidades do país saltou de R$ 178 milhões, em 2020, para R$ 487 milhões, em 2021, aumento de 173%.

No catálogo o “item” mais caro é uma obra de asfaltamento. Cotada por metro quadrado, como se fosse a colocação de piso em uma sala, a “Pavimentação em Concreto Betuminoso Usinado a Quente (CBUQ)”, sai por R$ 2 milhões por cada trecho de 2 Km.

Os congressistas têm mais duas opções de obras. O asfaltamento com Tratamento Superficial Duplo (TSD) custa R$ 1 milhão por cada km, e a pavimentação com bloquete de concreto é orçada em R$ 770 mil por trecho de 1,5 Km.

Até mesmo pontes de concreto e aço estão disponíveis para os padrinhos de emendas. São sete modelos, que vão de R$ 400 mil a R$ 810 mil.

Na prática, após escolherem quais “itens” vão destinar para seus redutos, os congressistas enviam ofícios à Codevasf para que a estatal somente cumpra as orientações.

Uma dessas comunicações se tornou uma peça-chave para investigação da área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União) que indicou o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) como autor de direcionamento de obras da Codevasf para a empreiteira Engefort, alvo de investigações pelo uso de empresa de fachada em licitações federais e campeã em contratos de pavimentação no governo Bolsonaro.

Em ofício enviado à Codevasf em maio de 2021, Alcolumbre indicou:

1) as cidades a serem beneficiadas pelas chamadas emendas de relator apadrinhadas por ele;

2) o tipo de pavimentação a ser usado nas obras;

3) e a extensão das obras em cada um dos municípios indicados pelo aliado de Bolsonaro.

Para os técnicos da corte de contas, “quando há a indicação do parlamentar ou do empregado público para a realização de obra com um revestimento específico, sem qualquer fundamentação técnica e econômica expressa, indiretamente estão também se direcionando recursos para uma determinada ata [contrato] e, por conseguinte, a uma determinada empresa para a sua execução”.IFrame

O presidente do Ibraop (Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas), Anderson Uliana Rolim, afirma que esse modelo quebra toda a lógica de definição dos orçamentos públicos que vinha se consolidando principalmente a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal.

“O parlamentar dificilmente conseguirá aplicar o recurso de maneira a atender efetivamente a necessidade da população, uma vez que esta ação, em princípio, está descolada do planejamento que esses estados e municípios fazem do que seriam os seus gastos mais prioritários no atendimento do interesse público local”, diz.

De acordo com ele, obras iniciadas dessa maneira podem não só não atender à demanda da população como acabar paralisadas, ampliando o custo desse tipo de aplicação de recursos.

Segundo reportagem do jornal O Globo, a Codevasf firmou um contrato de R$ 61,7 milhões para a compra de tratores com uma empresa fundada há apenas dois anos: a Imperiogn Comércio de Máquinas Equipamentos e Serviços, registrada em nome de Ana Luiza Cassiano Batista, de 21 anos.

A Controladoria-geral da União (CGU) identificou risco de superfaturamento de R$ 11,8 milhões no negócio firmado pela estatal.

O jornal relatou ter identificado um perfil do LinkedIn em que Ana Luiza se apresenta como vendedora de calçados numa loja da capital goiana.

Procurada, a mãe de Ana Luiza, Andrea Cassiano Batista, afirmou que a filha não tem empresa registrada em seu nome e que ela trabalha como diarista em Goiânia. A estatal nega que haja irregularidades nesse negócio.

CODEVASF DIZ QUE LISTA DE EQUIPAMENTO ESTÁ DENTRO DE SUA ATUAÇÃO

Procurada pela Folha para comentar a edição do catálogo de máquinas e obras, a Codevasf afirma que a lista de equipamentos e serviços traz suas principais linhas de atuação, citando assuntos como infraestrutura hídrica e urbana, agricultura irrigada, escoamento de produção e revitalização de bacias hidrográficas.

“A destinação de bens e serviços às localidades que integram a área de atuação da empresa, composta por 16 unidades da federação, é precedida de avaliações técnicas e observa as características de desenvolvimento e as aptidões produtivas locais”, diz a estatal.

A empresa relata ainda que que diversas instituições públicas diversas possuem publicações semelhantes, disponíveis para consulta na internet.

O senador Alcolumbre diz que “a Codevasf é a empresa responsável por todo o processo de execução orçamentária e de implantação das obras, sem nenhuma interferência parlamentar fora de critérios legais”.

Fonte: Folha de São Paulo

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