Força motriz do movimento que resultou na “Carta aos Brasileiros” de 1977, manifesto que reuniu eminências do mundo jurídico em uma inédita denúncia pública à ditadura militar (1964-1985), Almino Affonso não pôde assinar o documento ou comparecer ao seu lançamento e leitura no dia 8 de agosto no pátio da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo.
Almino havia recém-retornado ao Brasil do exílio e recebia com frequência a visita da Polícia Federal em sua casa. O grupo avaliou que seria arriscado demais associá-lo à manifestação na faculdade e que sua presença poderia virar pretexto para repressão ao ato.
“Eu achava esse receio desproporcional. Ao mesmo tempo, pensava: se eu, por vaidade, vou —e bem que eu queria ir, e muito— e de repente acontece algo, criando um drama no nosso pátio? Isso seria intolerável”, lembra ele. “Não fui.”
Aos 93 anos, o ex-ministro do Trabalho do governo João Goulart e deputado cassado durante o golpe de 1964 comemora o fato de poder apoiar publicamente a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito“, manifesto pela democracia inspirado na carta que ajudou a construir 45 anos atrás.
“Hoje eu sou um cidadão livre, como não era naquele período, e não tenho como não ir”, diz Almino.
O documento reuniu diferentes setores da sociedade brasileira, contabiliza mais de 600 mil assinaturas em poucos dias e seus articuladores acreditam ser possível chegar a 1 milhão de signatários até o ato de lançamento previsto para o dia 11 de agosto na mesma Faculdade de Direito da USP.
“Há uma área da sociedade que está reagindo depois de estar calada, por mais que houvesse manifestações grosseiras e abusivas do presidente. Hoje, existe uma reação. Há um estado de espírito de resistência a isso”, avalia ele.
“A carta de agora mexeu num quadro de falta de unidade”, avalia. “Ela dá uma resposta coletiva e pública que estava nos faltando diante das inquietações impostas ao país pelas posições de sua excelência [o presidente]”, diz ele, referindo-se aos crescentes ataques do presidente Jair Bolsonaro (PL) ao STF (Supremo Tribunal Federal), ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral ) e às urnas eletrônicas, às vésperas do início de uma campanha presidencial para a qual não é favorito.
De acordo com o Datafolha, o atual presidente tem 29% das intenções de voto enquanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem 47%.
Testemunha de um movimento dos comandos militares em 1964 que ele classifica como traição ao então presidente João Goulart, Almino avalia a posição das Forças Armadas como uma incógnita. Para ele, depois de “entulhar os cargos civis com militares, o que não é tradicional nem desejável”, Bolsonaro criou um clima de medo com sua retórica golpista e com o armamento da população.
“Que Bolsonaro é um pretenso golpista, isso é real. Resta saber o que o sustenta a tentar ir adiante com isso.”
O sr. disse à Folha em 2018 que era exagero chamar Bolsonaro de golpista. O que mudou de lá para cá?
Logo após sua vitória eleitoral, que foi extraordinária, os rumores eram de que Bolsonaro era do golpe, daria o golpe, coisas assim. Era difícil imaginar alguém consagrado pelas urnas tramando um golpe. Era desproporcional.
O que mudou foi que ele não manteve um equilíbrio mínimo e realizou um governo sem nexo, sem orientação, com políticas econômicas sem possibilidades imediatas mesmo já tendo assumido o governo com desemprego e crise econômica. Todo dia tem xingatório que não é próprio do presidente da República. Ele cria um clima tumultuário e tem uma atitude golpista na maneira de dizer e de agir. Mas ele só ganhou porque nós havíamos deixado um vazio.
Nós quem?
Fernando Henrique, Lula, os mandatários da sucessão de eleições democráticas tradicionais que tinham dado em governos, aqui e ali, de regular a ótimos. Houve falta de orientação e de unidade, o que até hoje é uma coisa dramática entre nós, ou seja, a falta de um projeto que visualize além do imediato. Sofremos essa derrota em 2018. E, em grande parte, fomos muito mais derrotados do que Bolsonaro ganhou.
Como assim?
Em 2018, nós fomos para uma campanha já derrotados. Havia muita disputa interna. E demos chance de o Bolsonaro crescer.
Lula estava preso. Meu amigo [Geraldo] Alckmin teve apenas 4% dos votos depois de ter sido governador de São Paulo por duas ou três vezes. Marina Silva veio do Acre com uma auréola de coisas interessantes, mas sem chances. O Ciro, uma figura brilhante, mas com uma incapacidade inacreditável de articulação, a ponto de hoje estar com 8%, sem a menor chance de ganhar. E o que é a grandeza humana? É dizer: eu abro mão dos que pensaram em mim porque, em nome do meu país, eu convoco todos a tal coisa.
Estávamos nos derrotando por falta de unidade, como estava acontecendo aqui e agora. A coisa custou muito a aglutinar.
Qual é o papel do manifesto atual nessa aglutinação?
A manifestação de agora alterou esse quadro de falta de unidade. É uma atitude coletiva importante que não estava expressa publicamente desta maneira, e isso é fascinante. Que beleza de repente sentir que há na sociedade um contingente que quer que a democracia ressurja e se consolide.
No que isso vai resultar? Não sei. Mas que surja, que façamos. Isso está sendo gestado neste momento.
No que resultou a carta de 1977?
Aquela era uma carta pela volta do Estado democrático de Direito, e ela jogou papel sequente extraordinário. Inaugurou uma era de manifestações, a partir do Comício da Sé [de 1984], que deu início a uma série de comícios nacionais. Foi um momento criativo fantástico. E acho que estamos vivendo esse pré, agora, com essa nova carta.
A ausência mais notável na carta de 1977 foi a de Raymundo Faoro, então presidente nacional da OAB.
Grandes juristas participaram diretamente. Colhemos assinaturas por toda parte. E Faoro era uma figura de enorme renome jurídico e intelectual. Respeitadíssimo. Numa homenagem a ele, na casa do presidente da OAB de São Paulo, levei a carta a ele. Era um fato que me orgulhava levar a nossa carta para ele assinar. Ele tomou a carta, que era volumosa, e disse uma frase que até hoje para mim é doloroso repetir por ser ele quem era, alguém que tinha nosso respeito. Na frente de todo mundo, ele disse: “Essa carta tão desproporcional, eu resumiria em 15 linhas”. E, nessas horas, eu não sou bom, me perdoe (risos). Eu disse: “Presidente, há uma diferença. Quem fez a carta, com toda a grandeza, foi o professor Goffredo da Silva Telles Jr., enquanto o senhor nem pensou fazê-la”.
Por que o sr. não assinou a carta de 1977 nem esteve no ato de agosto?
Nem eu nem Plínio de Arruda Sampaio. Eu tinha recém-chegado ao Brasil do exílio, em 1976. E minha casa era frequentemente visitada por policiais para verificar se eu não tinha coisas escondidas. Também era frequentemente convidado pela Polícia Federal para depor. Eu dizia: “Não me convide porque convidado eu não venho. Se o senhor me obrigar, aí eu não tenho alternativa”. Esse era o clima.
Os colegas do grupo motor desse ato avaliaram que a Polícia Federal poderia transformar a nossa presença num pretexto para ir ao ato e nos retirar de lá e, com isso, causar algo. Eu achava que esse receio era desproporcional. Ao mesmo tempo, pensava: Se eu, por vaidade, vou —e bem que eu queria ir, e muito— e de repente acontece algo, criando um drama no nosso pátio? Isso seria intolerável.
Os fatos eram todos muito inseguros. O caso Vladimir Herzog, o desaparecimento do Rubens Paiva, que era da alta [sociedade] e cujo pai tinha relação de amizade com o ministro da Justiça do general Médici. A prisão dele já não tinha sentido, a tortura muito menos, mas mataram. Então era uma revolta muito grande. Tudo podia acontecer.
Concordei em não ir. E quem representou o grupo dos estudantes no ato em meu lugar foi o [ex-ministro da Justiça] José Gregori. E, quando terminou o ato, fomos todos juntos comer uma pizza (risos).
Há um tanto de medo hoje em dia também?
Acho que o Bolsonaro criou um clima de medo. Um homem que a cada instante sugere quadros de repressão e de intolerância. O cidadão que coloca a arma como algo vital e que ele quer que se multiplique e se multiplique… Quando os EUA estão fazendo esforços enormes para limitar isso porque estão matando pessoas por lá da maneira mais estúpida possível. Por que criar um clima assim? Isso tem crescido, e isso tem pesado, novamente, porque há falta de peso do nosso lado também. Onde estão as grandes figuras nos comícios?
O quanto desse medo deriva da grande presença militar no governo e de seu potencial apoio a Bolsonaro?
O drama é que a forma como os militares se comportam nos surpreende. Os quatro comandos fundamentais do país em termos militares traíram João Goulart em 1964 e deram o golpe. O general Amaury Kruel, ex-ministro da Guerra do governo, era padrinho do filho do João Goulart e o traiu. Em entrevistas posteriores, todos foram unânimes em dizer que o fizeram em salvaguarda do país contra o avanço comunista. E isso é de uma estupidez total. Eles estavam próximos do governo e podiam verificar isso. Havia figuras que a gente achava fantásticas e que depois estavam marchando na rua contra a gente.
Essa ameaça comunista é evocada ainda hoje, agora pelo atual presidente. Por quê?
Eu só vejo como estupidez. Onde você tem força comunista hoje? Quem? É o Lula? O Lula de comunismo não sabe o que é “a”. “Ah, ele faz uma política social que interessa aos pobres.” Isso, em si, não é mau.
Hoje, o próprio presidente tem feito o que pode para, aqui e ali, criar símbolos de poder que vão além da farda. A presença própria de um número espantoso de militares em cargos civis do governo, inclusive alguns indevidos. Essa é uma atitude de prestigia o brio militar. E que, a meu ver, remete à situação da Venezuela.
Em qual sentido?
Apesar do caráter ditatorial do governo da Venezuela, que para nós é evidente, os militares do país o mantém intocado. Isso porque o governo venezuelano passou a fazer uma política social em relação aos militares. Ele deu melhorias e benefícios de tal forma para os militares que eles ficaram prisioneiros ao bem-estar. E olha que já houve bastante tentativa de luta na Venezuela, mas eles caem e caem e caem.
Eu acho que hoje os militares brasileiros estão nesse mesmo quadro.
O Brasil de Bolsonaro está mais próximo da Venezuela em relação aos militares?
Nesse sentido de favorecer socialmente os setores militares, isso é público e notório. O resto da política venezuelana, eu seria chutador se comparasse ao Brasil.
Que Bolsonaro é um pretenso golpista, isso é real. Resta saber o que o sustenta a tentar ir adiante com isso. O presidente tem supostas relações com as milícias. E há quem diga que, se os militares não quiserem [apoiar um golpe], as milícias o apoiariam. Mas se o Exército quiser manter a ordem democrática, as milícias podem ter o armamento que quiserem porque qualquer militar com um pouco mais de capacidade liquida com eles. Portanto nem Bolsonaro pode imaginar um golpe de Estado com as milícias, mas apenas se tiver uma base militar real.
E ele tem?
Não sei. Mas ele trata disso todos os dias, não é? Que ele sonha em continuar na Presidência, isso não cabe à gente ser ingênuo. Ele sonha sim. Mas por que não fez um bom governo?
Almino Afonso, 93
Advogado, ex-ministro do Trabalho do governo João Goulart e deputado cassado e exilado durante a ditadura militar. Após a redemocratização, foi vice-governador de SP (1987-1991), pelo PMDB, e eleito novamente à Câmara dos Deputados em 1994, pelo PSDB.
Fonte: Folha de São Paulo