Um dia após o grupo fundamentalista islâmico Taleban tomar o controle do Afeganistão, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, veio a público reafirmar sua decisão de retirar as tropas americanas e atribuiu a culpa do colapso do país ao governo e aos militares afegãos.
“O avanço do Taleban se desdobrou mais rapidamente do que prevíamos. E o que aconteceu? Líderes políticos afegãos desistiram e fugiram do país”, disse Biden, em discurso na Casa Branca, nesta segunda (16). “Os militares afegãos desistiram, algumas vezes sem tentar lutar. Isso comprovou que não devemos estar lá. Tropas americanas não devem lutar e morrer numa guerra que os afegãos não querem lutar.”
Em uma fala na qual lavou as mãos sobre as responsabilidades americanas na crise afegã, o democrata listou esforços dos EUA para construir um governo que pudesse fazer frente à facção radical, incluindo o gasto de mais de US$ 1 trilhão e o treinamento de 300 mil militares, “uma força maior em número do que a de muitos aliados da Otan [aliança militar do Atlântico Norte]”. “Demos todas as ferramentas. Pagamos salários. Demos uma força aérea, algo que o Taleban não tem. Mas não podíamos dar a vontade de lutar.”
Antes da queda do governo para o Taleban, as Forças de Defesa afegãs tinham orçamento de US$ 5 bilhões por ano. A força aérea celebrada por Biden, por sua vez, contava com 23 caças Super Tucano, além de cerca de mil veículos blindados de transporte e 110 helicópteros, entre outros itens.
“Conversei com Ashraf Ghani [presidente afegão]. Tivemos conversas francas. Avisei que o Afeganistão deveria estar pronto para lutar uma guerra civil, combater a corrupção e fazer negociações internas. Eles falharam em cumprir tudo isso”, prosseguiu o democrata. Ghani deixou o poder no fim de semana e se refugiou no exterior, sob a justificativa de que queria evitar um banho de sangue no país.
Biden disse que, na situação atual, não haveria como manter a paz no país sem enviar mais soldados, o que levaria a uma terceira década de conflitos. “Quantas gerações mais teríamos de enviar para lá? Não vou repetir erros do passado, de lutar em guerras sem fim que não têm a ver com os interesses dos EUA. Mantenho minha decisão. Não haveria uma hora certa para retirar as tropas do Afeganistão.”
O presidente repetiu que a missão americana era capturar os terroristas por trás dos ataques do 11 de Setembro e evitar que grupos radicais usassem o Afeganistão como base. Ainda que tenha lamentado a situação atual, Biden foi taxativo ao afirmar que o objetivo dos EUA nunca foi construir um país.
O democrata disse ainda que a meta agora é tirar cidadãos americanos e aliados do Afeganistão e que, caso o Taleban tente atrapalhar o processo, sofrerá ataques. Também lamentou as cenas vistas em Cabul nos últimos dias e prometeu ajudar afegãos que auxiliaram os EUA durante a ocupação militar a deixarem o país. “Muitos deles não saíram antes porque tinham esperança no país”, disse.
Nesta segunda, uma multidão de afegãos tentou embarcar em aviões que deixavam o aeroporto da capital afegã. Vídeos registraram pessoas tentando subir em aeronaves em movimento, prestes a decolar, numa tentativa desesperada de fugir de um regime que deve retomar políticas fundamentalistas, como a proibição de que mulheres possam estudar e trabalhar fora de casa.
Também nesta segunda, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, responsável pela diplomacia americana, conversou com os chanceleres de China e Rússia sobre a situação no Afeganistão. Os países sinalizaram que planejam ter relações diplomáticas com um governo afegão comandado pelo Taleban.
Biden estava em silêncio desde sábado (14), quando, em um comunicado, reafirmou a decisão de retirar as forças americanas do país. No domingo (15), a Casa Branca divulgou uma imagem do democrata em reunião virtual em Camp David, casa de campo presidencial, para tratar da questão. Biden deveria tirar alguns dias de férias, mas retornou nesta segunda, depois que as cenas de caos no Afeganistão em meio à tomada de poder pelo Taleban geraram críticas ao governo devido à falta de planejamento na retirada.
No domingo, Biden foi atacado por republicanos e ex-dirigentes militares da gestão de Barack Obama. Ryan Crocker, ex-embaixador no Afeganistão, disse que a saída demonstrou uma “total falta de coordenação e planejamento pós-retirada”. David Petraeus, ex-diretor da CIA, classificou a situação de catastrófica e um enorme revés para a segurança nacional.
“Se você tivesse mantido o status quo, com 2.500 ou 3.500 militares em solo conduzindo operações contra o terrorismo, esta catástrofe não teria que acontecer”, disse Liz Cheney, deputada republicana do estado de Wyoming, ao canal de TV ABC.
No fim de semana, a imprensa americana destacou declarações do presidente dadas há pouco mais de um mês e que explicitavam contradições e erros de avaliação. Em julho, ele havia prometido que os EUA continuariam dando apoio ao governo afegão e disse acreditar que o Taleban não tomaria o poder à força, como ocorreu no domingo, pois os militares afegãos estariam bem treinados e equipados.
Pesquisas mostram que a maioria dos americanos, de ambos os partidos, apoia a saída dos EUA do país. No entanto, Biden vem sendo criticado pela forma caótica com que a saída se deu, além de erros em informações de inteligência do governo, que pintou um cenário totalmente diferente do que ocorreu.
Estimava-se que as forças afegãs conteriam o avanço taleban, ou ao menos resistiriam por alguns meses.
A guerra no Afeganistão, iniciada em setembro de 2001, é a mais longa já promovida pelos EUA. A saída militar havia sido acordada pelo governo anterior, de Donald Trump. Em setembro de 2020, o republicano iniciou uma negociação com o Taleban, apontando para a retirada das tropas americanas em 2021.
Em meio ao caos que se instalou, o ex-presidente chegou a pedir a renúncia do sucessor neste domingo (15).
Biden deu sequência às tratativas e, em 14 de abril, anunciou que colocaria fim à operação no país asiático até a simbólica data de 11 de setembro de 2021. Em seguida, antecipou o prazo para 31 de agosto, o que encorajou o Taleban a avançar rapidamente.