Após decisão do Tribunal de Contas da União que suspendeu a execução de obras irregulares no Distrito Federal realizada pela Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), é a vez de cidadãos e políticos piauienses denunciarem irregularidades cometidas pela estatal federal no Estado, especificamente nos municípios de Arraial e Francisco Ayres.
Para relembrar o caso, no dia 25 de maio último a Folha de S.Paulo noticiou a decisão em que o TCU apontava ação política e ausência de critérios técnicos nos processos licitatórios realizados pela Codevasf na modalidade de pregão eletrônico. Especificamente na Capital Federal, o mecanismo foi utilizado para obras orçadas em mais de R$ 25 milhões.
A Folha destacou ainda que, apesar de não haver proibição do uso dessa modalidade, as licitações utilizam manobras que atendem principalmente aos interesses de empresas de construção civil e de agentes políticos. Na prática, obras de pavimentação de alto grau de complexidade são “enquadradas” em um padrão simplificado, sendo que seu preço final é estimado por metro quadrado de obra, o que resulta em superfaturamento e menor transparência nos gastos, na fiscalização e na qualidade de serviço.
Mas as irregularidades cometidas nas obras Companhia entregue pelo presidente Jair Bolsonaro aos membros do “Centrão” não se restringem somente a Brasília. Com a repercussão do caso, também vieram à tona os abusos cometidos no interior do Piauí.
No início de 2022, o Governo Federal, através do Ministério da Casa Civil anunciou obras de recuperação de estradas vicinais nos municípios de Arraial e Francisco Ayres, que seriam realizadas por meio da Codevasf. O projeto, conforme noticiado, contaria orçamento de mais de R$ 1 milhão, com origem no Orçamento Geral da União, destinado por meio de emendas parlamentares.
Contudo, as perspectivas de melhoria de vida da população das áreas rurais desses municípios foram rapidamente frustradas. As obras que prometiam a pavimentação de 170 quilômetros de estradas vicinais duraram apenas cerca de um mês e o resultado não foi como o esperado.
Segundo informações colhidas com moradores de Arraial e Francisco Ayres, a situação das estradas piorou após a realização das obras feitas em tempo recorde. Apenas um terço do trecho prometido foi entregue, mas com a utilização de materiais de péssima qualidade. O restante do trecho permanece com as antigas estradas de terra, conforme se vê nas imagens abaixo, tiradas no trecho entre os povoados Retiro e Capivara.
Com os problemas, os vereadores de Arraial, um dos municípios “contemplados” pelas obras, chegaram a encaminhar expediente ao diretor da Companhia denunciando a situação e solicitando imediata fiscalização da empresa responsável pelo empreendimento, a Construtora Ética, com sede em Goiânia.
Em paralelo, o poder executivo de Arraial e Francisco Ayres, cujos prefeitos são, respectivamente, Aldenes Barroso (PP) e Eugênia de Sousa Nunes (Republicanos), continuam a fazer publicidade em cima das obras.
Obras fake e desvio de recursos públicos
O receio dos parlamentares municipais e dos moradores, contudo, é o de que as estradas anunciadas sejam na verdade as chamadas “obras fake” – ou seja, investimentos amplamente publicizados especialmente em ano eleitoral e que servem unicamente ao fim de promover entes políticos que supostamente conseguiram ou destinaram emendas para as execuções, mas que na verdade não se concretizam.
Além disso, as inúmeras falhas e a falta de transparência nos procedimentos também podem ser um forte indício de desvio de recursos públicos, ainda mais se considerarmos que a Codevasf se tornou um dos principais destinatários de emendas parlamentares, incluindo as chamadas “emendas secretas”, aquelas que não indicam o mandatário, bem como das chamadas “emendas especiais”, cuja destinação não é especificada.
Municípios recebem dinheiro de emenda de Iracema
Não há dúvidas de que muito dinheiro foi destinado a essas obras. Conforme indicado no Painel Parlamentar, ferramenta do Ministério da Economia para o acompanhamento das emendas do Congresso, verifica-se que a deputada Iracema Portela (PP-PI) destinou R$ 100 mil em 2021 para o município de Arraial, por meio do convênio de nº 09032021-010064.
Também no ano de 2021 foi destinada uma emenda secreta (sem remetente definido) para o município, através do convênio sob o nº 919647, no valor de R$ 286.500,00, cujo objeto era de pavimentação. Já no ano de 2022, Iracema Portela destinou nova emenda na modalidade transferência especial para Arraial, agora no valor de R$ 400 mil, com o convênio nº 09032022-014963.
Do mesmo modo, no fim de 2021 foram destinadas duas emendas secretas para pavimentação ao município de Francisco Ayres, com os convênios nº 919565/2021 e nº 919666/2021, a primeira no valor de R$ 382 mil e a segunda no valor de R$ 286.500,00.
De outro lado, também a escolha da empresa executora da obra vem sendo alvo de preocupação, uma vez que os procedimentos internos da Codevasf não possuem o mínimo de transparência. Na Plataforma da própria entidade não se encontram publicadas as licitações do ano exercício de 2022, qualquer que seja a modalidade. Também nos anos anteriores não se encontra qualquer referência às obras anunciadas em Arraial e Francisco Ayres.
Apesar disso, a responsável pelo projeto foi a Ética Construtora Eireli, CNPJ 26631473/0001-80, o que somente foi possível apurar diretamente na obra.
A construtora, além de ter como em seu quadro societário membros de tradicionais famílias do empresariado e da política de Goiás, também possui relação com consórcios e empresas cujos sócios estão envolvidos em grandes escândalos de corrupção, a exemplo de Luiz Alberto Rassi, investigado na operação Águas Claras, sobre fraudes em licitações de empresas de saneamento básico, e de Jackson Jones Alberci, denunciado na Operação Decantação, que investiga desvio de dinheiro na Saneago, empresa de saneamento básico de Goiás.
Por fim, é preciso destacar que as irregularidades praticadas pela Codevasf não são recentes. Relembre-se o esquema denominado “tratoraço”, denunciado pela redação do Estado de São Paulo no fim de 2021, quando foram efetivadas as compras de maquinário agrícola por meio de verbas oriundas de uma espécie de orçamento paralelo de cerca de três bilhões de reais, mesmo após indicação de irregularidades e pedidos de correção desses vícios por parte da Controladoria Geral da União.
Barganha política envolve irmã de Ciro Nogueira
Outro caso de destaque envolvendo a Codevasf e políticos do Centrão foi a nomeação de Juliana Nogueira, irmã de Ciro Nogueira, para o cargo de assessora do presidente da estatal, Marcelo Moreira Pinto, em uma clara troca de favores, uma vez que a indicação de Moreira Pinto partiu de Nogueira.
Essa indicação, em verdade, é mais um indício da barganha política entre o governo federal e os políticos do chamado Centrão, partidos conhecidos por firmar alianças com os mais diversos espectros políticos por mera conveniência, o que começou pela indicação do próprio Senador Ciro Nogueira, ex-aliado de Lula e presidente do Partido Progressista, a Ministro da Casa Civil, em 22 de julho de 2022.
Ao que tudo indica, a grande promessa feita por Bolsonaro de acabar com o “toma lá dá cá” com o Centrão está longe de se concretizar. Enquanto isso, estatais como a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco continua deixando de lado os anseios da população e servido a interesses meramente políticos, o que parece ganhar ainda mais força com a necessidade de propaganda e barganhas com a proximidade das eleições gerais de 2022.