Sérgio Moro recebeu por 11 meses à frente de sabe-se lá qual trabalho na Alvarez & Marsal a formidável quantia de R$ 3,537 milhões — média de R$ 321.545 por mês. São muito raros os altos executivos que chegam a esse patamar. Duvido que alguém lhe pagasse isso por aqui. Os americanos resolveram lhe dar essa bolada para, consta, atuar nos EUA e lidar com empresas de lá. Com que conhecimento de causa? “God knows”. Entre sofismas e bravatas, tentou partir para o ataque na “live” desta sexta. Só restou o ridículo do esforço desajeitado com o intuito de minimizar o escândalo. Moro pode tentar explicar tudo, menos o inexplicável. Vamos ver.
Comecemos pelo básico e óbvio. O grupo Alvarez & Marsal lucra com a recuperação judicial de empresas que a Lava Jato quebrou. Havia alguns lugares em que esse paladino da moralidade pública jamais poderia ter trabalhado. A A&M era um deles. Desde quando um braço do grupo começou a lidar com recuperações judiciais, em 2014 — ano de criação da Lava Jato, diga-se —, já faturou R$ 83,5 milhões nesse ramo, dos quais R$ 65,1 milhões (78%) vieram de firmas investigadas pela operação.
Convenham! Isso deveria bastar. Por muito menos do que isso — infinitamente menos! —, o então juiz Moro autorizou mandados de busca e apreensão, decretou prisões preventivas intermináveis, autorizou conduções coercitivas, fez o esparramo que conhecemos, reinando, absoluto, como a pena do terror judicial ao longo de cinco anos. Empresas foram à bancarrota, um setor da economia brasileira beijou a lona, milhares de empregos se perderam.
Numa tentativa tosca de justificar a contratação, tanto Moro como a A&M alegam que, por restrição contratual, ele estava impedido de atuar em casos que diziam respeito a empresas investigadas pela Lava Jato. Classifico essa linha de defesa de “tosca” porque ela é admissão tácita de que se estava cruzando a linha do aceitável.
Por isso mesmo, houve um esforço de blindagem para a hipótese de que alguém achasse impróprio o… impróprio. Não importa com quantas divisões e com quantos CNPJs a A&M venha a público para alegar que se tratava de divisões distinta, só uma coisa não conseguirá provar: que os ganhos obtidos pela área de recuperação judicial não integram o demonstrativo de resultados do grupo.
Ainda que tudo obedecesse à mais rigorosa formalidade legal, há, inegavelmente, uma intrínseca imoralidade no conjunto da obra. Moro não acha que pode ser medido pela régua que ele sempre usou para decidir a sorte daqueles que caíam no seu radar.
É evidente que os dados que ele trouxe a público não bastam. O Ministério Público Federal de Brasília tem lá uma petição, apresentada por uma associação de juristas, que pede a abertura de um inquérito para apurar essa estranha relação. Como, reitero, os eventos não encontram uma explicação razoável, as tentativas de justificar o que aconteceu e de blindar seus personagens só contribuem para tornar a história mais suspeita e nebulosa.
UMA AFIRMAÇÃO ELOQUENTE
Pouco antes de Moro estrelar a sua patética “live”, em que tentou partir para o ataque — e direi qual é a falácia fundamental de sua investida –, Marcelo Gomes, CEO da Alvarez & Marsal Brasil, e Eduardo Seixas, sócio-diretor da Alvarez & Marsal Administração Judicial, falaram com o Estadão. E só evidenciaram ao MPF de Brasília por que é preciso instaurar também a investigação de caráter penal.
Depois de insistir na tecla de que Moro não atuou em casos ligados a empresas investigadas pela operação — argumento que, convenhamos, não para de pé –, coube a Seixas anunciar que as autoridades brasileiras jamais saberão o que fez no grupo o ex-juiz da Lava Jato, ex-ministro da Justiça e atual pré-candidato à Presidência. Referindo-se a Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União, relator do caso, afirmou o executivo:
“Ele [ministro Bruno Dantas] não pode pedir nenhuma informação sobre um trabalho privado que o Moro executou pra uma companhia nos Estados Unidos. Quer dizer: ele pode, mas não vai receber porque são informações privadas dos Estados Unidos, e [a] muitas delas nem eu tenho acesso. Então ele não vai receber”.
E insistiu:
“Sobre qualquer contratação de empresa na qual o Moro trabalhou no exterior, isso ele [Bruno Dantas] não vai, com certeza, ter nenhum acesso, porque são empresas privadas e não vai ter motivo [para] ter esse tipo de informação.”
Vejam, pois, que fabuloso. O ex-juiz da Lava Jato, que provocou um terremoto na economia e na política, assinou, sem que se saiba com quais credenciais, um contrato milionário com um grupo que lucra com as empreiteiras que a operação quebrou. Tanto as ações penais como os acordos de leniência e os processos de recuperação judicial têm natureza pública. E também é público o desastre que o então magistrado provocou.
Moro, então, faz o seu acordo com A&M — que já seria exótico se feito para durar. Chegou-se até a anunciar que seria um sócio-diretor do grupo no Brasil, hipótese em que o conflito de interesses ficaria arreganhado. Então se criou a figura do “consultor” pago a peso de ouro. A relação não dura nem um ano e é rompida.
A Lava Jato levou muitos consultores para o banco dos réus porque partia da pressuposição de que não se havia prestado serviço nenhum e de que a consultoria era só uma forma de tornar viável o pagamento de propina. Daí que se exigissem provas dos serviços prestados. Onze meses e quase quatro milhões depois, Moro está de volta ao país e agora reivindica não um emprego, mas o Brasil.
CAMINHO PARA O CRIME PERFEITO
Atentem para a fala do tal Seixas, da A&M. Sendo como ele diz, nem Bruno Dantas nem ninguém jamais saberão o que Moro fez nos EUA. Nem mesmo se terá a certeza de que trabalhou nos menos de 10 meses em que lá atuou. Convenham: não dá nem para fazer amizade. Que conhecimento fabuloso tinha ele da realidade americana para, de cara, já vender serviços de “consultor”? Parece brincadeira.00
Hipoteticamente ao menos, abre-se o caminho, nessa perspectiva, para o crime perfeito. Moro pinta e borda por aqui, passa a trabalhar para um grupo que é beneficiário dos desastres que ele provocou e assina um contrato com o dito cujo para supostamente atuar em empresas americanas. Logo, jamais se saberá o que fez ou o que não fez por lá porque o homem que pretende governar o Brasil se livra de prestar a informação, usando como escudo a legislação americana. Um patriota como raramente se viu.
Imaginem se a moda pega. A propósito: a A&M tem algum outro juiz ou procurador na mira?
FALÁCIA POLÍTICA
Instruído por seus aprendizes de “spin doctor”, Moro resolveu, claro!, atacar Lula e Bolsonaro. De modo patético, afirmou que ele abria as próprias contas — limitou-se, na verdade, a revelar alguns detalhes de um mero contrato — e desafiou os outros dois a fazer a mesma coisa. Falou nas rachadinhas da família presidencial e nas palestras de Lula.
Uma nota: em março de 2016, a empresa que gerenciava as palestras do já então ex-presidente publicou a lista com todos os dados. O próprio Moro, quando juiz, quebrou o sigilo dessa empresa, e a juíza Gabriela Hardt, a lavajatista que sucedeu, na 13ª Vara, o agora candidato reconheceu que não houve irregularidade nos eventos.
Moro se esquece de que era juiz e de que chegou, num dado momento, a ser a pessoa mais poderosa, perigosa e temida do Brasil. E injustamente amada. Milhões acreditavam — tolamente, sempre achei — no seu idealismo, no seu heroísmo, na sua nobreza de caráter.
As leis, os juízes e o Judiciário servem também como remédios para os males da sociedade. Então voltamos ao Padre Vieira a que recorri por estes dias: quando os remédios estão doentes, quem os remedeia?
A empreitada de Moro, resta claríssimo, estava direcionada para o poder. Fez o que bem entendeu da ordem legal — com a conivência, admita-se, dos tribunais —, enxergou corrupção em tudo, menos na própria sombra, e, como se nota, enriqueceu. Agora, quer nada menos do que a Presidência da República.
E não adianta as autoridades brasileiras tentarem saber que tipo de “serviço” prestou nos EUA, se é que prestou algum. As autoridades americanas jamais permitirão que se saiba. Destaque-se: boa parte do seu tempo foi destinada à articulação política.
ARGUMENTAÇÃO RIDÍCULA
Seixas, da A&M, afinado com Moro, repete ao Estadão argumento que já ouvi da boca de político aliado ao ex-juiz:
“Como é que ele [Moro], lá em 2013, 2014, investigou uma companhia pra que a companhia entrasse em recuperação judicial depois de sete anos? É uma coisa até fantasiosa. Ele ia sair da magistratura, virar ministro, depois de ministro ia pra iniciativa privada… Enfim, é uma coisa até complexa de se imaginar.”
Não sei se Seixas não pensa direito ou se supõe que os outros são idiotas. Ninguém está acusando Moro de ter começado a quebrar as empreiteiras em 2014 já imaginando que ganharia uma bolada em 2021. Não conteste, senhor, a burrice que não se disse.
O ponto: Moro foi trabalhar no grupo que lucra alguns milhões com as recuperações judiciais das empresas que a Lava Jato, que ele comandava (segundo o próprio) quebrou. Ademais, conduzindo acordos de delação e de leniência, beneficiou diretores dessas empresas. Não se trata, Seixas, de avaliar as disposições subjetivas de Moro em 2014, mas a situação objetiva do ex-juiz e da A&M em 2020.
Entendeu ou quer um desenho? Deixe a política para os políticos. Ou acaba se enrolando também.
ENCERRO
Moro reclama de autoridades de Brasília. Ora, sempre terá Washington…
Ah, sim: ele também escolheu a live, a exemplo do ex-chefe. Só falta agora dar entrevistas coletivas a fiéis no cercadinho. Se bem que parte do “jornalismo” amigo não se distingue muito daqueles iluminados.
Nota final: no dia em que Moro se atrapalha todo para tentar explicar, sem conseguir, seus ganhos milionários na A&M, a Justiça declara extinto o processo do tal tríplex. Que nunca foi de Lula, segundo a própria A&M, que pagou a bolada a Moro. Parece fim de novela mexicana. O mocinho era o bandido, e o bandido, o mocinho.
Por Reinaldo Azevedo, do UOL