Famílias com renda de um quarto a meio salário mínimo por pessoa —atualmente, R$ 303 a R$ 606— ainda recorrem à Justiça para acessar o BPC (Benefício de Prestação Continuada), apesar de o Congresso ter aprovado a ampliação da política justamente para contemplar esse grupo.
O governo Jair Bolsonaro (PL) ainda não regulamentou as novas regras do benefício, que é pago no valor de um salário mínimo (R$ 1.212) a idosos acima de 65 anos e pessoas com deficiência de baixa renda.
O maior alcance do BPC foi aprovado pelos congressistas, em maio de 2021, em acordo político com o governo, incluindo a equipe econômica.
Antes, a lei previa o pagamento da ajuda apenas às famílias com renda de até um quarto de salário mínimo por pessoa, o que era frequentemente questionado na Justiça.
O caso foi parar no STF (Supremo Tribunal Federal), que, em 2013, firmou o entendimento de que a renda de um quarto do salário mínimo é insuficiente como critério para medir a vulnerabilidade do cidadão.
Após anos de discussões, a nova lei foi sancionada em junho de 2021, prevendo que os critérios seriam aplicados a partir de 1º de janeiro de 2022.
No entanto, a implementação envolve um aumento permanente nas despesas, de aproximadamente R$ 2 bilhões ao ano, para incluir cerca de 180 mil beneficiários. A fim de cumprir a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), o governo precisa compensar esse valor com cortes em outros gastos.
Uma MP (medida provisória) com iniciativas para fechar brechas deixadas na reforma da Previdência, promulgada em 2019, foi elaborada pelos técnicos do governo e enviada à Casa Civil para análise.
A expectativa era que a economia de recursos possibilitada pela MP fosse a fonte de compensação para a regulamentação do BPC. Mas o texto está até hoje parado nos escaninhos do Planalto, sem decisão política para que avance.
O Ministério da Cidadania, responsável pela execução do BPC, confirmou que a ampliação do limite de renda mensal para receber o benefício depende do decreto regulamentador.
“Até lá, vale a regra em vigor, ou seja, para acesso ao BPC, a renda por pessoa do grupo familiar deve ser igual ou menor a um quarto do salário mínimo”, afirmou a pasta, em nota.
O Ministério do Trabalho e da Previdência disse que os requisitos fiscais para a regulamentação do BPC “serão atendidos com a publicação da MP da Previdência que está em fase de elaboração”. A pasta, porém, não estipulou prazos para a adoção das medidas.
Nos bastidores, técnicos do governo lamentam a demora, pois ela pune famílias mais pobres que precisam dos recursos da ajuda governamental e acabam tendo o pedido negado pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Muitas recorrem à Justiça para pedir que sejam considerados fatores como o grau de comprometimento da renda com a compra de medicamentos, fraldas, suplementos especiais ou contratação de cuidadores, ou ainda o grau de deficiência do potencial beneficiário.
O decreto elaborado pelos técnicos vai justamente nessa direção, de permitir que, mediante a comprovação dessas situações, famílias com renda de até meio salário mínimo também possam receber a ajuda.
O BPC contempla hoje 2,15 milhões de idosos e 2,56 milhões de pessoas com deficiência, com uma folha mensal que soma R$ 5,2 bilhões, segundo dados de novembro de 2021.
À época da sanção, o ministro João Roma (Cidadania) disse que a nova lei iria “fortalecer o BPC”.
Na prática, além de os novos critérios estarem só no papel, o BPC é o benefício que tem a maior fila de espera no INSS. A concessão para pessoas com deficiência depende de realização de perícia médica, atividade que ficou prejudicada pela pandemia de Covid-19.
Em novembro, dado mais recente disponível, havia 416,2 mil pedidos de benefício aguardado perícia médica do INSS.
Na avaliação de técnicos do governo, a combinação da regulamentação do BPC e a MP para fechar brechas na Previdência seriam medidas equilibradas.
De um lado, elas corrigiriam distorções, como a que permite elevar o valor da aposentadoria a partir de uma única contribuição sobre o teto do INSS (hoje R$ 7.087,22) —o chamado milagre da aposentadoria. De outro, gerariam os recursos necessários para favorecer famílias de menor renda.
Técnicos reconhecem, porém, que o tema previdenciário é sempre sensível. Por isso, os articuladores das medidas preferiam que elas tivessem sido encaminhadas em 2021, uma vez que o calendário político de 2022 é desfavorável a esse tipo de iniciativa.
Agora, há dúvidas sobre a viabilidade política de seguir com a MP da Previdência. Por isso, os técnicos tentam encontrar outras soluções, mas nada de concreto foi decidido.
A advogada Liliane Alcântara, do escritório Gomes Soares de Oliveira Advogados Associados, já representou diversas famílias na Justiça em busca do BPC e afirma que a flexibilização do critério de renda, como aprovado pelo Congresso, ajudaria um número maior de beneficiários.
“A gente sabe que o volume de requerimentos administrativos é enorme, e com essa regulamentação seria muito mais simples o acesso a esse benefício pela população, e ainda diminuiria muito a quantidade de processos judiciais”, diz.
O economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, da Fundação Getulio Vargas, afirma que o governo teria até incentivos políticos a regulamentar o BPC neste ano e ampliá-lo. Ele ressalta, no entanto, que, do ponto de vista de focalização de políticas públicas e redução da pobreza, o benefício não é a melhor alternativa.
“Se o objetivo é combater a pobreza, cada real gasto com o Bolsa Família reduz a pobreza 670% mais do que cada real gasto com o BPC”, diz. O Bolsa Família foi substituído no ano passado pelo Auxílio Brasil.
Segundo Neri, embora a injeção de recursos por meio de transferências possa ter efeito positivo sobre a economia, é preciso avaliar cuidadosamente um aumento permanente de uma despesa que, nas estimativas, não parece tão focalizada.
Isso acontece porque o BPC é focado em idosos e pessoas com deficiência, público em que as taxas de pobreza são menores do que entre crianças. “Não é retirar do BPC o que o BPC já fez, mas a discussão agora é o que ele poderia fazer”, afirma Neri.