Nas últimas semanas, a Folha colheu relatos de parlamentares que, em caráter reservado, afirmam que os quóruns obtidos nas sessões virtuais têm ocorrido sem que haja efetiva participação, com boa parte dos votantes passando todo o tempo com o áudio e o vídeo de seus aparelhos celulares ou computadores desligados.
Além disso, alguns levantam a suspeita de que assessores estariam votando no lugar dos deputados, o que é proibido e configura quebra de decoro parlamentar, passível de cassação do mandato.
Antes da pandemia, as votações no plenário da Câmara ocorriam de forma exclusivamente presencial, com registro biométrico tanto da presença quanto do voto.
No plenário, há dispositivos nas mesas que ficam diante dos parlamentares. Para votar, o deputado primeiro tecla seu código pessoal. Depois coloca o dedo no leitor biométrico e, após a liberação, aperta um dos botões que ficam debaixo das mesas: sim, não ou abstenção.
Com a pandemia, a Câmara, sob a gestão de Rodrigo Maia (DEM-RJ), instituiu o Sistema de Deliberação Remota com o objetivo de evitar a aglomeração de parlamentares no plenário.
A resolução que implantou a medida estabeleceu que cada parlamentar cadastraria um aparelho de telefone celular e, por meio de login e senha no aplicativo Infoleg, poderia votar à distância, de qualquer lugar.
Além da votação remota, a resolução vetou a biometria, o que, na prática, abre brecha para que o parlamentar terceirize o exercício do voto, bastando apenas repassar o aparelho cadastrado, o login e senha.
“Nenhuma solução tecnológica utilizada pelo Sistema de Deliberação Remota implicará o trânsito de dados biométricos de parlamentares pela internet”, diz a resolução, trecho que foi fruto de temor de deputados de que seus dados biométricos fossem capturados por hackers na internet.
No próprio documento é registrado que “a disponibilização pelo parlamentar a terceiro de sua senha pessoal ou do dispositivo cadastrado para registrar seu voto importará em procedimento incompatível com o decoro parlamentar”.
A Folha obteve print de uma conversa de um grupo de mais de cem deputados e assessores em que um parlamentar, cujo nome foi borrado pela pessoa que repassou o documento, afirma que assessor estaria votando no lugar de deputado.
A conversa trata da votação do projeto que flexibilizou as regras de licenciamento ambiental no país.
O “massacre” citado por um dos integrantes do grupo diz respeito ao placar da votação de um requerimento para que o texto não fosse votado: 300 votos contra, 15 a favor e 95 que escolheram obstrução (um meio de tentar derrubar a sessão).
Em várias sessões que vão até tarde da noite ou entram na madrugada há agora registro de elevada presença dos parlamentares, o que nas reuniões presenciais só ocorria poucas vezes, em votações mais importantes.
A análise de uma medida provisória em 25 de maio é um exemplo: apesar do quorum de uma das votações totalizar 454 parlamentares, a sala virtual de discussão só tinha 44 participantes, sendo boa parte com o microfone e o vídeo do celular desligados. No plenário físico, havia cerca de 30 parlamentares.
Em quintas-feiras, a participação em sessões presenciais costuma ser baixa, já que nesses dias a maioria dos deputados já voltou ou está voltando para seus estados. Após a instituição da votação remota, isso deixou de ser um problema. Em 20 de maio, a Câmara aprovou três medidas provisórias.
“Ontem a Câmara dos Deputados bateu o recorde de 26 votações! Numa quinta–feira, 504 presentes das nove da manhã até as oito da noite! Voto pelo celular, sem que ninguém veja os deputados! @ArthurLira_
passando a boiada!”, escreveu o deputado Carlos Zarattini (PT-SP) em suas redes sociais no dia seguinte.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que é aliado do presidente Jair Bolsonaro, é o responsável pela pauta de votações
À Folha o petista disse que o sistema remoto funcionou no começo para impedir a paralisia do Congresso, mas que agora tem que ser aperfeiçoado.
“O deputado pode estar fazendo qualquer coisa, ele recebe um sininho [notificação] e vota. É um jeito de passar a boiada. Quando tem o [voto] presencial, o deputado tem que vir para o plenário para votar, tem que, de alguma coisa, se informar das coisas. Agora, o cara aperta aquilo que a liderança marcar.”
Vice-presidente da Câmara, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), tem opinião similar: “Penso que o voto remoto é irreversível e que vamos qualifica-lo e dar mais segurança criando um mecanismo de confirmação pela digital, como temos no plenário.”
Em nota, a Câmara afirmou que a área técnica “está analisando a adoção de biometria facial no processo de votação remota” e que o projeto ainda está em caráter inicial. “Trata-se de um investimento em segurança previsto no cronograma de evolução do aplicativo”.
A Casa ressaltou ainda que a resolução que implantou a medida estabelece que a “senha do parlamentar e o dispositivo logado no sistema são de uso pessoal e intransferível” e que o “desrespeito a esta norma é considerado procedimento incompatível com o decoro parlamentar”.
Nos anos 1980 e 1990, a Câmara assistiu a episódios do que ficou conhecido como o caso dos deputados pianistas, que de posse da senha de colegas ausentes votavam em nome deles.
Em 1988, no Congresso constituinte, o então senador Edison Lobão (PFL-MA) foi acusado, sem comprovação, de votar no lugar do deputado Sarney Filho (PFL-MA), que estava no Maranhão.
Em 1992, a Casa instalou TV para fiscalizar as votações, mas não adiantou. Em 1998 o deputado José Borba (PTB-PR) —que anos depois se envolveu também no escândalo do mensalão— foi flagrado votando em três ocasiões por Valdomiro Meger (PFL-PR) na emenda de reforma da Previdência.
Ainda naquele ano, a Câmara implantou o sistema de biometria para acabar com a fraude. Apesar de terem sido abertos procedimentos para cassar o mandato dos acusados, a Câmara não puniu ninguém no escândalo dos pianistas.