Isso indica que as discussões sobre mudanças jurídicas no contrato com a empresa apenas se intensificaram no final do ano passado.
O primeiro passo para adquirir as doses de vacina era assinar um memorando de entendimento, uma espécie de carta de intenções, atrelado ao qual estavam as cláusulas jurídicas consideradas “leoninas” por Pazuello.
De acordo com os emails, a primeira contraproposta ao documento que aparece formalizada por escrito à Pfizer ocorreu em 4 de dezembro.
A “carta de intenções” foi assinada em 10 de dezembro do ano passado, contrariando pareceres jurídicos do governo, segundo o ex-ministro. “E nós assinamos o MOU, mesmo sem as assessorias jurídicas”, disse Pazuello à CPI.
Segundo os documentos da CPI a que a Folha teve acesso, a Pfizer apresentou uma terceira oferta de doses de vacina em 24 de novembro com validade até 7 de dezembro encaminhando uma nova proposta de memorando. Essa oferta havia sido acertada após reunião no dia 17 daquele mês.
Naquele momento, o laboratório afirmou ao Ministério da Saúde que havia promovido “adequações de ordem jurídica” e e alterado trecho do contrato para constar que o pagamento só deveria ser feito pelo governo dez dias após o registro do imunizante pela Anvisa, conforme já havia sido discutido com o governo.
O gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, ainda comunicou que havia incluído a União como parte do “memorando de entendimentos não vinculativo” e que havia alterado o local de arbitragem sobre o tema para o Brasil.
Mais tarde, em 2 de dezembro, Murillo enviou dois emails, um destinado ao gabinete do ministro e à assessoria internacional e outro encaminhado ao então secretário-executivo da pasta, Élcio Franco, que estava negociando diretamente com a empresa.
“Em nossa terceira oferta enviada ao governo brasileiro na semana passada, em 24 de novembro, conseguimos adequar as limitações de ordem jurídica que foram compartilhadas conosco a partir de nossa segunda proposta. Um dos pontos mais relevantes foi estabelecer a condição para o contrato definitivo à emissão do registro sanitário pela Anvisa”, disse Murillo.
Na mesma mensagem, Murillo escreve que os países da América Latina que firmaram acordo aceitaram “as mesmas cláusulas de responsabilidade e indenização”.
Após um período resistindo à compra de vacinas, o presidente Jair Bolsonaro passou a afirmar que compraria qualquer vacina que tivesse o aval da Anvisa.
O gerente da Pfizer também encaminhou três propostas de esquemas possíveis de distribuição e vacinação.
“Essas propostas foram desenvolvidas com base na experiência que temos com o Programa Nacional de Imunização (…) e nos acordos que estão sendo estabelecidos com outras países da América Latina como Chile, Peru, Equador, México e Costa Rica, que possuem algumas similaridades com o território brasileiro”, informou Murillo no email encaminhado ao secretário-executivo.
O representante da Pfizer afirmou que os países listados conseguiriam iniciar a vacinação no final de 2020 ou início deste ano.
Disse também que se “por um lado entendemos que o quantitativo disponível para o Brasil para o primeiro trimestre é limitado e não permitirá vacinar a maioria da população, esse quantitativo permite sim cobrir grupos prioritários e de maior risco já no primeiro trimestre”.
Àquela altura, a Pfizer negociava 70 milhões de doses, mas já não ofertava mais vacinas com entrega em 2020. A proposta previa entregar 2 milhões de doses no primeiro trimestre deste ano, mais 6,5 milhões no segundo trimestre e o restante até o final do ano.
O Ministério da Saúde só firmou acordo com o laboratório em março de 2021, quando adquiriu 100 milhões de doses —das quais 14 milhões devem ser entregues até junho, e o restante até setembro deste ano.
Ainda no email de 2 de dezembro destinado ao secretário-executivo, Murillo reclama de não ter conseguido contato com ele após mandar a proposta oficial da empresa em 24 de novembro.
“Deixamos inúmeras mensagens em seu gabinete e também reforçamos o pedido por email. Como ainda não tivemos retorno, gostaria de comentar alguns pontos relacionados ao tema”, escreveu Murillo.
Na outra mensagem enviada naquele mesmo dia ao ministro da Saúde, o gerente da Pfizer elenca as mesmas informações com relação aos entraves jurídicos, doses, e detalhes sobre armazenamento da vacina e ressalta a importância de receber uma resposta.
“Se os senhores já tiverem tomado a decisão de não avançar com a assinatura desse documento [ memorando não vinculativo], possam nos comunicar para que possamos liberar essas doses para que elas sejam disponibilizadas aos países da região que estão trabalhando em seis planos de vacinação que irão começar nos próximos dias, sujeitos a aprovação regulatória nesses países.”
Ao final do email, Murillo reforça que “a condição de não responsabilização futura para a Pfizer sobre futuras demandas litigiosas tem sido praxe aceita por todos os países que já fecharam acordo”.
O gerente ainda informa que buscava contato com o secretário-executivo e diz que “gostaria muito” de poder se reunir pessoalmente com Pazuello.
Após essa troca de mensagens, em 4 de dezembro, o Brasil apresenta a primeira contraproposta de memorando segundo os emails a que a Folha teve acesso.
Dias depois, em 9 de dezembro, a Pfizer registrou em email que soube que o país deveria editar uma medida provisória para conseguir assinar o contrato .
A partir dali as negociações passam a incluir também o advogado Zoser Hardman, que à época era assessor especial de Pazuello, e hoje, segundo o ex-ministro, advoga para ele de maneira gratuita.
A tratativa a respeito da medida provisória seguiu até janeiro, quando a Pfizer pediu reunião presencial para tratar do dispositivo que seria publicado pelo Brasil.
Por fim, a MP que tratou de vacinas acabou publicada, mas os itens que permitiam ao poder público assumir as responsabilidades previstas nas cláusulas foram retiradas do texto encaminhado ao Congresso. Segundo Pazuello disse à CPI, não houve consenso sobre os termos negociados entre os representantes jurídicos dos ministérios.
O que garantiu a assinatura do contrato com a Pfizer foi a edição de um projeto de lei pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
“Não havia consenso de que deveria sair de uma MP nossa, e sim de discussões no próprio Congresso. Foi isso que me foi passado”, disse o ex-ministro da Saúde em depoimento na semana passada.
Segundo os documentos enviados pela Pfizer à CPI, o Ministério da Saúde só respondeu a oito dos emails que foram encaminhados pela empresa a partir de fevereiro do ano passado. O primeiro contato feito pela farmacêutica foi em carta enviada ao presidente Jair Bolsonaro em 17 de março, como mostrou a Folha.
De 14 de agosto de 2020, quando a Pfizer fez a primeira oferta formal ao Brasil, a 12 de setembro de 2020, quando o presidente mundial do laboratório mandou carta ao Brasil, o governo não deu respostas conclusivas a ao menos dez emails mandados pela Pfizer.