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Entenda a estratégia da Rússia para reagir ao ataque da Ucrânia em Kursk

BdF – A Rússia realizou na última segunda-feira (26) um dos maiores ataques à Ucrânia desde o início da guerra. Foram 15 regiões atingidas, diversas cidades ficaram sem luz e ao menos cinco pessoas morreram em um bombardeio massivo no qual foram utilizados mais de 100 mísseis e mais de 100 drones.

O ataque foi uma reação de Moscou à intervenção na região russa de Kursk por parte da Ucrânia, que assumiu o controle de vários assentamentos nas áreas fronteiriças em uma operação sem precedentes dentro do território russo.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador Pérsio Glória, doutorando da Universidade Estatal de São Petersburgo, aponta que, no atual cenário, “é bem provável que outros ataques dessa magnitude ocorram”. Segundo ele, pode até haver uma escalada de tensões e a Rússia aumentar cada vez mais esse tipo de pressão, “utilizando de uma certa vantagem nessa questão dos ataques de longo alcance, de superioridade aérea que a Rússia ainda detém”.

Um dos objetivos da intervenção em Kursk, reconhecido por autoridades ucranianas, é de forçar a Rússia a sentar à mesa de negociações em condições mais justas para a Ucrânia.

O próprio presidente russo, Vladimir Putin, ao comentar o início da operação ucraniana em Kursk, afirmou que o ataque foi uma tentativa da Ucrânia de “melhorar a sua posição de negociação no futuro, de travar o avanço dos militares russos e também de semear o pânico na sociedade”.

Ao mesmo tempo, acusando as forças ucranianas de atacar civis em território russo, Putin rechaçou a possibilidade de realizar negociações com a Ucrânia nestas condições. “Mas sobre que tipo de negociações podemos falar com pessoas que atacam indiscriminadamente civis, infraestruturas civis ou tentam criar uma ameaça às instalações de energia nuclear?”, concluiu Putin.

Na última quarta-feira (28), a porta-voz da chancelaria russa, Maria Zakahrova, reforçou a impossibilidade de diálogo na atual conjuntura, afirmando que é justamente a ofensiva ucraniana em Kursk que faz com que a Rússia descarte qualquer possibilidade de negociações com Kiev no atual momento.

Ao Brasil de Fato, o cientista político Ivan Mezyukho afirma que em meados de junho o presidente Vladimir Putin chegou a anunciar uma proposta para pôr fim à guerra, sob a condição de que a Ucrânia abrisse mão dos territórios do leste do país – Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye – anexados pela Rússia. Segundo o analista, agora esta iniciativa fica ultrapassada.

“Se analisarmos a empreitada de Kursk do ponto de vista geopolítico, nesse sentido o regime de Kiev conseguiu que a iniciativa de paz de Putin, anunciada na véspera da ‘cúpula de paz’ na Suíça, agora seja menos atual. Apesar de que, ao atingir a profundidade do território russo, o regime de Kiev contava com o fato de que isso poderia entrar em um processo de negociação com o nosso país partindo de uma posição de força. Mas isso é uma representação ingênua da política russa”, afirma.

Futuro dos EUA é futuro da Ucrânia

Ao mesmo tempo, há uma pressão da conjuntura internacional que impõe uma certa “corirda contra o tempo” ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para que a Ucrânia consiga dar continuidade ao fluxo de ajuda financeira e militar do Ocidente: as eleições presidenciais dos EUA.

O cientista político Ivan Mezyukho aponta que é uma “situação geopolítica que se dificulta” para a Ucrânia, pelo fato de que “Zelensky faz o cálculo de que ele precisa ao máximo conseguir negociar a tempo os recursos financeiros do Ocidente para produção de armas e munições até a data das eleições presidenciais dos EUA”. Segundo ele, “independente de quem vença nas eleições dos EUA, a estratégia de Washington sobre a Ucrânia será alterada”. “Não falo de uma mudança fundamental, mas pelo menos taticamente, isso acontecerá”, completa.

Nesta sexta-feira (30), a Rússia realizou um novo forte bombardeio na região ucraniana de Kharkov, atingindo áreas residenciais. Segundo as autoridades locais, ao menos quatro pessoas morreram e 28 ficaram feridas. Ao comentar o ataque em Kharkov, Zelensky reforçou o apelo para que o Ocidente autorize o uso dos seus armamentos para ataques ao território russo de longo alcance.

“Este ataque foi de uma bomba guiada russa. Um ataque que não teria acontecido se as nossas Forças de Defesa pudessem destruir aeronaves militares russas onde estão baseadas”, escreveu Zelensky em seu canal do Telegram. Atualmente, os Estados Unidos e outros países ocidentais restringem a autorização aos ataques das Forças Armadas Ucranianas em território russo apenas contra áreas próximas à fronteira.

Já o pesquisador Pérsio Glória, concorda que parte da estratégia ucraniana é “demonstrar ao Ocidente que a Ucrânia tem capacidade de manter a guerra para continuar o fluxo de recursos, de armamentos”. Ao mesmo tempo, ele observa que é justamente essa dinâmica que pode levar a uma escalada ainda mais grave na guerra.

“Eu acho que o Ocidente tem a capacidade de incrementar a posição de armamentos, enviar mais armas, recursos. É claro que depende do apoio popular, mas eu acho que a influência midiática ocidental consegue manter de certa forma esse apoio por bastante tempo. Então eu diria que há uma questão perigosa, porque os russos também não vão recuar, vão também aumentar a escalada”, argumenta.

Ofensiva em Donbass

Outro objetivo da Ucrânia em seu ataque a Kursk era dispersar o poder de fogo da Rússia ao longo do front de batalha e fazer com que Moscou fosse forçada a frear a sua ofensiva em Donbass, no leste da Ucrânia, onde vem conseguindo avanços desde o fim de 2023.

Na última quarta-feira, no entanto, o próprio presidente ucraniano reconheceu a dificuldade de suas tropas diante da operação russa em uma das regiões do leste do país.

“Houve um relatório do Comandante-em-Chefe. [A situação em] Pokrovsky e outras áreas na região de Donetsk é extremamente difícil. Os principais esforços russos e um grande número de forças estão concentrados lá. E é muito, muito importante agora a estabilidade de cada uma das nossas divisões, a nossa capacidade de destruir o ocupante”, declarou.

Bombeiros ucranianos trabalham para extinguir um incêndio em uma casa após um ataque com mísseis em Myrnograd, região de Donetsk, em 21 de agosto de 2024. / Genya Savilov/AFP

As cidades de Pokrovsk e Mirnograd, no leste ucraniano, são as últimas grandes cidades da região de Donetsk que ainda estão sob o controle da Ucrânia. O avanço das tropas russas nesta semana já chegou aos arredores de Pokrovsk, ficando a 10 km do centro da cidade e colocando em risco um importante reduto das Forças Armadas da Ucrânia no leste do país.

Para o pesquisador da Universidade Estatal de São Petersburo, Pérsio Glória, os objetivos ucranianos eram de “tentar forçar uma parada da ofensiva russa em Donbass, para eles realocarem tropas, recursos e equipamentos para Kursk”, conquistando territórios em pontos estratégicos como o ponto de transferência de gás e a usina nuclear de Kursk. “Nesse sentido eu diria que o resultado para a Ucrânia não foi tão bom, porque a Rússia continua mantendo a ofensiva, está avançando de forma considerável em Donbass”, disse Glória.

Assim, de um lado da linha de frente, a Ucrânia busca ampliar a sua capacidade de atingir os territórios russos nas zonas fronteiriças perto de Kursk, já ao sul do front, a Rússia mantém a sua ofensiva em Donbass e não dá sinais de arrefecer os avanços nesta direção.

De acordo com Pérsio Glória, as evidências no campo de batalha indicam que essa transferência de tropas russas de Donbass para Kursk não aconteceu. “O que houve foi uma utilização das reservas russas para estabilizarem as frentes e, claro, com apoio técnico-militar, utilizando artilharia, o aparato aéreo”, explica.

Se nas últimas semanas a reação russa ao ataque em Kursk ainda era uma incógnita, agora a estratégia de Moscou fica mais clara: conter maiores perdas de seu território – mas sem tanta urgência de recuperá-los – e dobrar a aposta ao sul da linha de frente, conquistando áreas estratégicas na região de Donetsk, se aproveitando, inclusive, do deslocamento que a Ucrânia teve que fazer das suas forças para Kursk

“Os ucranianos tiveram que mover as artilharias que estavam dentro do território para mais próximo da fronteira. Esse movimento de equipamento também dá uma vantagem para a Rússia, porque eles estão fazendo uma incursão que não está na parte ofensiva, então você vai ter desvantagem”, afirma o analista.

Front em Kursk é um ‘novo normal’ da guerra?

A estratégia russa de manter certa cautela e não tomar medidas drásticas em Kursk e, ao mesmo tempo, intensificar o ritmo da ofensiva em Donbass, indica que a avaliação do Kremlin é de que é possível administrar e dar continuidade à operação militar na Ucrânia, mesmo com a presença de tropas ucranianas em território russo.

Isso representaria um redesenho da linha de frente – que ainda está em formação —, e um horizonte de retomada destes territórios fronteiriços em um ritmo mais lento. O pesquisador Pérsio Glória concorda que, do ponto de vista militar, a incursão em Kursk realmente criou uma “uma nova normalidade”, pois colocou um pedaço do território russo no mapa do front.

No entanto, no plano político e social, ele observa que a incursão em Kursk é um tema sensível e ainda em disputa. “Existe toda uma sacramentalidade em relação ao território do Estado, a sobrevivência do Estado. Eu acho que a reverberação disso ainda está ocorrendo a nível social. Em termos militares e estratégicos, sim, [Kursk] se tornou uma parte do front. Então é um ‘novo normal’ na questão militar, porque no político eu diria que não”, explica.

De acordo com ele, “é bem distinta a questão do conflito em Donbass e a questão do conflito em Kursk”, que pois esta é uma região russa, que “também tem um histórico das lembranças da Grande Guerra Patriótica, da batalha de Kursk”. “Isso tudo pode ser instrumentalizado na questão da identidade nacional, na utilização dessas memórias históricas. E isso pode ou não servir como um fator de aumento da mobilização popular. A gente ainda está vendo as reverberações disso na sociedade”, completa.

Fonte: Brasil de Fato – Edição: Lucas Estanislau – Imagem: Roman Pilipey/AFP

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