Na porta de um supermercado na região central de São Paulo, a dona de casa Eliane Dantas, 53, risca da lista de compras produtos que não vai conseguir levar —carne de segunda, óleo de soja e feijão. Ficam para uma próxima compra.
“Primeiro, me despedi do iogurte; agora, já comparo preços em três lugares diferentes antes de comprar o leite. Saudades do tempo em que a gente nem ouvia falar de inflação”, diz ela.
Parte do aperto vem da queda na renda. O marido faz bicos há seis meses enquanto procura emprego fixo. Mas a outra parte vem de um um aumento generalizado nos preços.
A inflação, um dos piores fenômenos que assolou a economia brasileira nos anos de 1980 e em boa parte da década de 1990, e só foi debelada com o Plano Real, voltou a perturbar os brasileiros. Ela ainda está bem distante dos patamares registrados naquela época. Em junho de 1994, por exemplo, chegou a 47%. No entanto, bate recordes e contamina itens básicos para o dia a dia das famílias, como alimentos, combustíveis e energia.
Os economistas apontam que há uma conjunção de fatores impulsionando os reajustes. Estão na lista as mudanças climáticas, que levaram a secas e geadas, a ruptura na cadeia global de fornecimento de matérias-primas durante a pandemia, que reduziu a oferta produtos, e a China elevando a compra de commodities, o que inflou as cotações de itens básicos, como soja e milho.
Mas pesa principalmente a alta do dólar frente ao real, que reflete a instabilidade política e econômica. O cenário incerto afeta a confiança dos investidores, incentivando que estrangeiros deixem o Brasil e que brasileiros segurem o dinheiro lá fora —movimentos que pressionam o câmbio aqui dentro.
Ricupero reforça que apesar de a inflação ser um problema no mundo inteiro, ela está mais baixa nos EUA, na Europa e na China. Preocupa também a diferença em relação a taxa de crescimento, que é menor no Brasil.
“Os americanos devem crescer mais; aqui, o crescimento é bem mais anêmico. O nosso problema se dá muito por fatores internos, pelo impacto dos preços das commodities e da desvalorização do real”, diz.
Segundo ele, isso demonstra a responsabilidade do governo Bolsonaro no problema.
“O Banco Central está consciente do risco da inflação, mas tenho a impressão de que [o ministro da Economia, Paulo] Guedes está sendo acomodatício em relação às preocupações políticas do governo. E há um risco grande de, na campanha eleitoral, eles recorrerem a uma medida eleitoreira que faça disparar ainda mais a inflação.”
Também demonstraram a mesma preocupação, em entrevistas recentes, outros economistas que participaram do Plano Real. André Lara Resende avaliou que a instabilidade causada pelo presidente é o principal fator responsável pela deterioração da economia; Gustavo Franco disse que a economia sofre e os mercados apanham com a crise.
Em seus discursos no dia 7 de setembro, Bolsonaro colocou mais gasolina na crise entre os Poderes. Dois dias depois, o presidente fez um giro em seu discurso, recuando do confronto.
Mas o efeito da turbulência sobre os preços já está dado e vai se estender pelos próximos meses.
Em agosto, o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor -Amplo) acelerou para 0,87% —a maior taxa para o mês em 21 anos, informou o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 12 meses, o indicador acumula alta de 9,68%.
Nos 12 meses, impressionam as altas do arroz (32,68%), do feijão fradinho (40,28%), do fubá de milho (28,15%), das carnes (30,77%) e do óleo de soja (67,70%). Também pesam no bolso do consumidor os aumentos do gás de botijão (31,70%) e da gasolina (39,09%).
“Meu maior receio é que eles estraguem o Plano Real”, diz o economista Claudio Considera, coordenador do Monitor do Produto Interno Bruto do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas). “Hoje, temos uma inflação mais resistente do que se imaginava, e isso é uma bola de neve.”
Considera lembra que a maior parte dos trabalhadores não teve aumentos reais (acima da inflação) e não há sinais claros de uma estratégia do governo para tentar amenizar a crise hídrica e conter a escalada dos preços, exceto pelo Banco Central, que tem sido obrigado a subir os juros básicos.
“Não sei qual é a política econômica do governo —e desconfio que ninguém saiba. Sempre disseram que fariam reformas e que a economia cresceria espontaneamente. Mas depois da reforma da Previdência, não conseguiram fazer nada de relevante”, diz o economista.
“A inflação era um fantasma que a gente imaginava ter domado”, diz Otto Nogami, consultor econômico e professor do Insper. “Este é um governo que acaba destruindo o legado da estabilização.”
No caso da energia, já se espera uma maior pressão dos preços nos próximos meses, pela alta da conta de luz, que ganhou uma nova bandeira tarifária, mais cara, para compensar o baixo nível dos reservatórios de hidrelétricas, durante a forte estiagem que parte do país enfrenta.
Nogami destaca a falta de ação e coordenação do governo para equacionar a questão elétrica, com a demora em reconhecer a gravidade do problema. “O governo não fez nada em termos de infraestrutura. A educação e a saúde também estão abandonadas.”
Em fala recente, que ele alega ter sido tirada de contexto, o ministro Guedes questionou: “Qual o problema agora que a energia vai ficar um pouco mais cara porque choveu menos? Ou o problema agora é que está tendo uma exacerbação porque anteciparam as eleições…”
“A lista de problemas que a sociedade enfrenta hoje é grave: desemprego, pandemia. Será que a gente quer incluir uma inflação mais alta, revertendo ao menos parte dos ganhos com a estabilização?”, questiona José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central e chefe do Centro de Estudos Monetários do Ibre-FGV.
Ele lembra que esse fenômeno já se disseminou no conjunto de preços, ao mesmo tempo que o governo não parece estar preocupado com essa questão.
Em agosto, a inflação já indicou maior disseminação entre os produtos e serviços, de acordo com o IBGE. O índice de difusão do IPCA saltou de 64% para 72%.
O economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, calculou que a inflação em 12 meses deve chegar aos dois dígitos em breve. Ele prevê que o IPCA irá fechar 2021 em 8,3% —bem além do teto da meta para o ano, de 5,25%.
Vale diz acreditar que a destruição do legado da estabilização da inflação do Plano Real pode acontecer, de fato, se a crise política se agravar e o presidente Bolsonaro conseguir concretizar suas ameaças golpistas.
“Um golpe levaria o Brasil para o caminho da hiperinflação, mas não creio que [Bolsonaro] terá espaço para essas aventuras, e o Banco Central continuará fazendo o papel de jogar água na fogueira. Mudar o cenário político seria hoje o mais importante para destravar a economia”, diz.
Como um legado positivo da estabilização da moeda, Rubens Ricupero acrescenta que houve uma mudança de mentalidade do país. “Antes, havia quem considerasse a inflação uma boa coisa, que estimulava o crescimento. Mas qualquer governo que tentar afrouxar a preocupação com ela hoje vai pagar um preço político alto.”
Fonte: Folha de S. Paulo