Viagem pelo Atlântico relembra pessoas escravizadas entre Brasil e Angola
“A Grande Travessia” é um projeto inédito sobre retomar a antiga rota marítima de tráfico de africanos vendidos como escravos

Mais de 2 mil pessoas vão cruzar o Atlântico a bordo de um navio, em dezembro deste ano, numa viagem que pretende refazer a rota do tráfico de pessoas escravizadas e promover a reflexão sobre a escravatura.
O projeto “A Grande Travessia” pretende fretar um navio de cruzeiro, com partida de Santos, parando no Rio de Janeiro e Salvador, antes de seguir rumo a Luanda, capital de Angola.
Viagem altamente simbólica
Dagoberto José Fonseca, antropólogo responsável pelo projeto, afirma que é a primeira vez que uma população que se autoidentifica oriunda de Angola, regressa ao continente africano nessa condição.
Em entrevista à ONU News, no Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura e do Comércio Transatlântico de Escravos, o professor da Universidade Estadual Paulista, Unesp, explica que o projeto “visa reconhecer, reparar para seguir memória e história dos nossos, um mundo atlântico em terra firme”.
O grupo escolheu a viagem marítima por ser altamente simbólica em relação ao tráfico de milhões de pessoas escravizadas entre os séculos 15 e 19.
Voltar pelas águas
“Quando nós perdemos algo em nossas casas, nós fazemos o caminho de volta para encontrar o que perdemos. Não há como fazer o caminho de volta, buscar a ancestralidade pelo avião. Nós teremos que voltar pelas águas, porque é pelas águas que os nossos antepassados passaram”, justifica o antropólogo.
Estima-se que cerca 5 milhões de africanos escravizados tenham sido levados para o Brasil, mais do que qualquer outro país. A maioria foi capturada em Angola, na África Ocidental, e deportada em condições desumanas a bordo de navios portugueses.
“As populações que saem do continente africano pelos portos de Angola, do atual território de Angola, são colossais, perto das populações que saem de outros portos do continente africano”, explicou.
Marcas visíveis até hoje
O professor da Unesp garante que as marcas dessa população são visíveis até aos dias de hoje no Brasil, com impacto na identidade nacional, cultura, gastronomia e língua.
Com Angola a preparar-se para celebrar 50 anos de independência em novembro de 2025, Dagoberto José Fonseca destaca que essa é mais uma razão para a realização da viagem este ano. “Não é à toa que o Brasil é o primeiro país a reconhecer a independência de Angola a 11 de novembro de 1975”, acrescentou.
Travessia de 21 dias
A viagem tem uma duração de 21 dias, com partida a 1 de dezembro de 2025. A travessia no Atlântico durará sete dias, seguidos de sete dias de permanência em Angola e a viagem de regresso por outros sete dias.
O projeto prevê a participação de cerca de 2.000 passageiros, incluindo estudantes, professores, académicos, empresários, descendentes de pessoas escravizadas e líderes de várias religiões.
As atividades a bordo incluem workshops, mesas-redondas, oportunidades de networking. A equipa acredita que o projeto vai permitir fazer a reabertura das rotas marítimas do Atlântico.

“O Atlântico não é um lugar de sepultamento”
A bordo do navio vão decorrer homenagens aos mais de 2,5 milhões de pessoas que perderam a vida na travessia entre o continente africano e o continente americano.
Dagoberto José Fonseca lembra que “o Atlântico não é um lugar de sepultamento” e que o projeto pretende ser “um reencontro com aquelas pessoas que foram violentamente, criminosamente jogadas no Oceano Atlântico”.
Os organizadores veem o cruzeiro como “parte de um movimento mais amplo que luta por reparações pela escravatura transatlântica e pelo colonialismo europeu.”
“Esse é o grande marco do projeto da Grande Travessia, que eu acho que encontra eco em tudo aquilo que as Nações Unidas têm produzido, desde os seus documentos, em 1948”, concluiu o antropólogo.
O Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura e do Comércio Transatlântico de Escravos foi criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2007 e assinala-se a este 25 de março.
*Correspondente da ONU News em Lisboa, Portugal
Fonte: ONU News – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil