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O que é possível prever sobre reação dos EUA a um possível golpe no Brasil?

Na última quarta-feira (31), o Brasil completou 57 anos do golpe que instalou a ditadura militar de 1964 a 1985. Na mesma semana, os três comandantes das Forças Armadas brasileiras pediram demissão de seus cargos alegando não compactuarem com “aventuras golpistas” do governo Jair Bolsonaro (sem partido). O episódio acendeu um alerta.

Um dia antes das renúncias dos comandantes, Bolsonaro já havia comunicado a demissão do então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, por discordâncias políticas sobre a atuação das forças armadas. O episódio nas vésperas do aniversário do golpe de 1964 causou apreensão na classe política e jurídica brasileira, com partidos e ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) chamando de “autogolpe”.

No entanto, o contexto que culminou no início da ditadura militar de 1964 é muito diferente do momento atual brasileiro. O cenário de Guerra Fria e o medo da ameaça comunista são partes dos motivos que levaram ao movimento militar. Essa realidade não está presente hoje e, mais importante, é quase invertida, já que o governo de Bolsonaro é considerado como alinhado à direita.

Além disso, para o sucesso do golpe, foi necessário o apoio do setor empresarial, da imprensa, da sociedade civil e, principalmente, dos Estados Unidos. Há, inclusive, estudos que apontam os EUA como os grandes arquitetos do golpe. Dessa vez, porém, Bolsonaro não teria o apoio americano, além de correr sérios riscos de se ver rechaçado internacionalmente pelo governo do democrata Joe Biden.

“Hoje a reação norte-americana seria bastante diferente do que foi em 1964. Os Estados Unidos nem têm canais no Brasil para poder fazer algum tipo de intervenção mais forte. O que a gente veria seriam protestos por parte do governo Biden, algum tipo de boicote, de ação internacional.” Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da FAAP.

Segundo o ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Ricupero, é possível prever a reação do governo Biden a um possível golpe no Brasil com base na atitude americana frente ao golpe de Mianmar. Em fevereiro deste ano, militares prenderam opositores e, desde então, mataram centenas de manifestantes.

“O golpe de Mianmar é um golpe militar e ocorreu quando Biden já era presidente. A reação americana tem sido muito dura até agora, com a aplicação até de sanções”, explica Ricupero.

“No caso brasileiro, você teria que multiplicar isso por cem ou por mil, porque Mianmar está longe, lá do outro lado do mundo, e tem a proteção da China. O Brasil não, ele é o maior país da área que os americanos consideram o quintal deles.” Rubens Ricupero, ex-embaixador

De acordo com o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, Felipe Loureiro, que estuda a participação americana no golpe de 64, o caso de Mianmar também demonstra que o governo Biden não cortaria relações diretas com o Brasil imediatamente, mas retaliaria os golpistas.

“Não há dúvida de que haveria, por parte do governo Biden, uma retórica de criticar talvez até de maneira bastante veemente”, explica. “Isso poderia desaguar para sanções específicas contra indivíduos ou empresas, mas não vislumbro uma atuação do governo Biden no sentido extremo para sancionar a economia brasileira como um todo.”

O contexto de 1964 e a Operação Brother Sam

O golpe de 64 foi orquestrado pelo alto escalão do exército brasileiro, como generais, que hoje já não demonstram interesse em apoiar as inclinações antidemocráticas de Jair Bolsonaro. O agora ex-comandante do exército, Edson Leal Pujol, saiu do cargo justamente por acreditar que militares não deveriam se envolver com a política.

O que restou à base bolsonarista foi inflamar militares de menor escalão, como incitar um motim por policiais militares da Bahia. A estratégia de utilizar soldados foi utilizada por Hugo Chávez na Venezuela em 2002.

“A única coisa que eu acho semelhante [de 64] com o momento atual é o fato de que o Bolsonaro está brincando com fogo ao atiçar sargentos e cabos”, compara Ricupero, que presenciou o golpe militar de 1964. “Isso é uma linha vermelha. Se ele continuar nessa linha, os oficiais ficam todos contra ele, que foi o que aconteceu com o João Goulart.”

Ricupero era um terceiro secretário na carreira diplomática nos anos 1960. Ainda assim, foi ele quem recepcionou Robert Kennedy, irmão do presidente americano John Kennedy, e o embaixador Lincoln Gordon em Brasília antes de uma reunião inflamada entre eles e o então presidente João Goulart.

“Eu sou testemunha viva de tudo aquilo”, brinca. “Estive presente em todos esses acontecimentos. Como naquela época eu só tinha 23 anos, eu sou o único que sobrou vivo.”

Mais tarde, o jovem diplomata descobriria que aquela reunião selou o destino de João Goulart e do Brasil democrático. Desde pelo menos 1962, os EUA já acompanhavam com preocupação o cenário, mas sentiam que os próprios militares brasileiros “não estavam prontos”.

“Os EUA naquela época tinham uma política deliberada de fomentar a queda dos governos de tendência esquerdista, nem precisavam ser comunistas”, conta Ricupero.

Documentos que mais tarde vieram a público mostraram que o americano Lincoln Gordon acompanhou de perto o movimento dos militares em 64 e chegou a enviar um telegrama ao governo dos EUA sugerindo a derrubada de Goulart. Ao apoio se denominou Operação Brother Sam.

O governo americano promoveu ajuda financeira aos governadores opositores à Goulart e enviou tropas para auxiliar os militares naquele 31 de março, mas elas não chegaram a ser utilizadas.

“Há muitos intérpretes internacionais da Guerra Fria que dizem que o golpe brasileiro foi o primeiro de uma série de golpes, todos eles parecidos, com a intenção de barrar o caminho a qualquer governo de esquerda.” Rubens Ricupero, ex-embaixador

Depois do Brasil, golpes semelhantes ocorreram na Argentina, na República Dominicana, no Chile — este com estudos apontando a participação ativa de militares brasileiros — e outros na América Latina.

Hoje, sem um apoio americano, Ricupero acha muito improvável o sucesso de um novo golpe. Felipe Loureiro concorda e acrescenta que faltaria o apoio dos outros setores que fundamentais para a implantação da ditadura militar de 64.

“Óbvio que isso não significa que um golpe não possa acontecer”, alerta o professor. “Bolsonaro ainda tem um apoio na sociedade bastante significativo e as mudanças que ele fez no campo militar podem apontar para a possibilidade de mobilização tanto nas Forças Armadas quanto das PMs no curto e médio prazo.”

“É muito difícil imaginar um golpe que se sustente se não tiver um apoio mais amplo para além daqueles que detém a força, e isso hoje o Bolsonaro está muito mais num momento de fraqueza que de força.” Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da USP. (Com Uol)

Redação

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