Ministra Anielle Franco defende inclusão de raça “em todos os quesitos de políticas públicas”
Em 30 de maio, a ministra Anielle Franco discursou na tribuna da Assembleia Geral falando em nome do Brasil no Fórum Permanente sobre Afrodescendentes, em Nova Iorque.
Em inglês, ela afirmou que a paz, a democracia, a segurança internacional, o combate às desigualdades e a garantia de direitos humanos “só irão coexistir quando os séculos de racismo sistêmico” forem reparados.
Neste mesmo dia, ela conversou com o Podcast ONU News, sobre algumas medidas que pretende adotar para garantir mais qualidade de vida e dignidade para as pessoas negras, que representam 57% da população brasileira.
ONU News: Ministra Anielle, a gente tem visto, já em 2023, episódios muito graves acontecendo no Brasil por parte de companhias aéreas, por parte de supermercados, no meio esportivo com um jogador brasileiro recentemente. Na análise da senhora, o que continua fazendo o racismo persistir no Brasil? Que condições estão alimentando o racismo na sociedade brasileira hoje?
Anielle Franco: Felipe, sua pergunta é extremamente importante. Eu acho que se eu pudesse destrinchar eu diria, primeiro, antes de mais nada, a importância de a gente ter agora a reestruturação desse Ministério da Igualdade Racial no Brasil, onde a gente tem 57% da população, mas muitas pessoas insistem em dizer que não existe (racismo). A gente tem um intelectual negro no Brasil que fala do desconhecimento do racismo ideológico, que é o racismo velado, o racismo onde as pessoas insistem em afirmar que não há racismo naquele lugar. Mas se a gente pega dados, se a gente pega pesquisa, se a gente pega produções, a gente vê que as pessoas pretas no Brasil estão ali todas sub-representadas em lugares e espaços de decisão, mas extremamente representadas em espaços de violência. Então eu começaria por aí. Eu acho que essa ignorância da qual a gente vê 33 milhões de pessoas no Brasil passando fome e 70% serem negras é muito complicado a pessoa ainda dizer que não existe racismo.
Tem muito trabalho a ser feito. Desde comunicar para fora a importância de cuidarmos desse povo, dando emprego, saúde, educação, de combater o genocídio, o enfrentamento também dessa matança da população negra brasileira. Mas também, por outro lado, fazer com que essas pessoas também se identifiquem e se tenham enquanto pessoas negras. Então é um caminho para tentar balancear ao mesmo tempo, mas também fazer com que o poder público, o governo e todas as pessoas entendam a importância de ter raça em todos os quesitos de políticas públicas.
ON: Ministra Anielle, está numa área que vai cuidar de todos da mesma maneira. É obrigada a fazê-lo. Mais de 57% são afrodescendentes. Que responsabilidade é que sente agora, depois de ter sido ativista, passando para ministra? É pesquisadora, é professora, é atleta, então tem todos estes chapéus, mas é ministra de um país. Qual é a responsabilidade?
AF: Enorme. Mas eu sempre costumo dizer algo que é o que me acalma e que ao mesmo tempo me anima estar aqui. Eu só estou na cadeira que eu estou e eu só vou permanecer aqui o tempo, que for necessário, porque eu sei de onde eu vim. Eu acho que se todo político, se toda pessoa que tivesse um lugar de poder, no mundo inteiro, tivesse passado por alguma necessidade anteriormente para defender aquele povo, acho que o nosso mundo seria diferente.
Quando você só se candidata, só se coloca em um lugar político de protagonismo porque você quer ou vias financeiras, ou porque você quer ter poder e não quer cuidar do povo, eu acho que aí a gente começa a ter problemas. E estar nesse lugar, tendo passado por tudo o que eu passei, vindo da favela da Maré, tendo bolsa de estudos, sendo atleta como você muito bem fala, perdendo a minha irmã da maneira que foi, eu acho que me fortalece para estar aqui com muita responsabilidade, mas sempre ouvindo as pessoas que mais necessitam.
Cuidar do povo brasileiro, negro, seja lá onde eles estejam, fora do país ou no país, como foi o caso do Vini Junior, como foi o caso de algumas mulheres em Portugal e Espanha que nós tivemos esse ano. É porque a gente gosta de cuidar do povo, mas além disso a gente tem orgulho de ser o que somos. Então estar aqui nesse lugar agora me fortalece porque eu sei de onde eu vim, onde eu estou e aonde eu quero chegar.
ON: Ministra, aproveitando, tem uma palavra que a senhora utiliza muito, que é de uma intelectual negra, a Conceição Evaristo, que é “escrevivências”. Justamente a junção de escrita com vivência. Nesse sentido, como as vivências que a senhora passou como mulher negra no Brasil, criada em favela, vão se traduzir agora na escrita de novas políticas?
AF: Já começaram. Eu acho que a Conceição tem um marco importantíssimo para toda e qualquer mulher negra brasileira e do mundo inteiro também. Na minha dissertação de mestrado eu uso o termo dela para trazer o porquê da criação do Instituto Marielle Franco. E quando a gente se senta dentro dessa máquina pública no governo federal, ainda mais saindo de seis anos desde o golpe da presidenta Dilma até os quatro anos de desgoverno que a gente tem em relação a políticas públicas para a população negra, a gente é obrigado a ouvir as mais velhas. Ouvir quem veio antes, pegar nossa experiência, entender e sentir a nossa história.
Eu acho que a construção de políticas públicas hoje dentro do Ministério da Igualdade Racial só existe e só tem sido feita com muita garra, eu diria, porque tiveram mulheres negras à frente, liderando organizações para que a gente pudesse pensar e estar aqui, sobrevivendo a isso.
ON: E tem um outro termo “violências”. Está aqui, no palco do mundo, depois de ter dado a voz há um ano e pouco, para que houvesse mais responsabilização. O que é que vê pela frente estando na frente de um Ministério de tanta responsabilidade, mas tendo esta sua tarefa de carregar mulheres e jovens e, acima de tudo, de raça negra?
AF: Eu vejo muita luta. Acho que a gente tem muita luta ainda pela frente, acho que não acabou. Eu vejo a gente galgando e alcançando espaços de protagonismo, de poder. É importante a gente seguir falando que pessoas negras estão preparadas para entrarem, estarem e se manterem em qualquer espaço de decisão. Eu sei que não vai ser fácil. Eu sei que no Brasil, especificamente falando da nossa pasta, a gente precisa cuidar deste povo com educação, com saúde, com emprego.
Trazendo ali vozes, como você muito bem fala das violências, porque o povo preto no Brasil passa por violência a todo instante, seja numa abordagem mais grosseira, seja sendo espancado dentro de um supermercado, ou seja, morrendo asfixiado dentro de um carro da própria Polícia Rodoviária Federal. Então a gente tem ali inúmeros casos que, infelizmente, cada vez mais acentuam a importância de a gente estar aqui nesse lugar.
Então eu vejo e eu espero que eu ainda consiga ver a frente pessoas negras realizando seus sonhos de se manterem vivas e de ter uma vida digna.
ON:Mas que a ação para estas pessoas, portanto, conseguirem chegar a esses patamares? Eu ouvi dizer que a ministra entrega CVs (currículos vitae) de jovens e tem ajudado tanto a abrir portas. Quer falar sobre este assunto? Porque os problemas existem e os desafios estão lá, mas aquele primeiro passo às vezes falta.
AF: É porque ainda existe no Brasil pessoas que acham que nós não estamos preparados, ou não temos estudos, ou somos ignorantes, ou somos apenas, como eles dizem, apenas pessoas negras. E para mostrar e para provar o contrário, no começo do ano, assim que eu assumi o Ministério, nós abrimos um link onde as pessoas poderiam se cadastrar para diversas áreas.
Então nós tínhamos ali desde turismo até ao direito e a gente conseguiu quase 10 mil currículos, de muitas pessoas que a cada hora pedem para que a gente abra. O que nós queríamos com isso? Para além de recolher os currículos, nós queríamos entregar e passar adiante os currículos com autorização dessas pessoas, obviamente. Então, se vinha alguém, ou algum ministro, ou alguma empresa dizendo que queria contratar uma pessoa para TI (Tecnologia da Informação). A gente pegava, pedia autorização e enviava.
E no nosso próprio Ministério nós contratamos pessoas a partir deste banco de currículos e em outros diversos Ministérios também.
ON: Como professora, que iniciativas na educação acredita que são urgentes para transformar um pouco também a origem de todo esse contexto de violência e discriminação contra a população negra?
AF: Nossa, a gente vai ter que ficar aqui umas duas horas para responder tudo, mas tentando resumir para você. Eu acho que além da aplicação da Lei 10.639, que é onde começa tudo e que conta a nossa história, para além da Lei de Cotas, a gente precisa muito fortalecer a lei de cotas No Brasil. A gente tinha 3,2% de pessoas negras que se formavam 20 anos atrás.
Hoje a gente tem mais de 60% de pessoas negras que se formam dentro de universidades públicas. Mas para além disso, a permanência. Porque não é tão simples ser uma pessoa negra no Brasil e ter que estudar longe. Então, às vezes tem a passagem, tem a alimentação, tem tudo isso. E um outro ponto que eu acho crucial é termos professores e professoras antirracistas.
Não adianta a gente colocar professores dentro da sala de aula de uma escola pública, por exemplo, onde o público majoritário é de crianças negras, e que eles não tenham empatia, ou não mostrem representatividade, ou não entendam a importância daquela criança estar ali. Muitas crianças negras no Brasil só comem nas escolas públicas, só comem naquela escola. É a única alimentação daquele dia.
Então a gente precisa fortalecer esses espaços para que essas crianças sejam e saiam dali confiante nos seus sonhos e tenham uma vida melhor.
ON: Ministra, uma curiosidade. Há poucos dias a senhora esteve com a ativista paquistanesa Malala, que é também uma referência global em educação para mulheres. Como foi esse diálogo? Como é que foi essa troca?
AF: Foi incrível. Eu acho que foi ali uma realização do meu sonho também. A Malala já tinha ido ao Brasil em 2018 e ela encontrou com a minha sobrinha logo após o assassinato da minha irmã (Marielle Franco) e ela lembrou desse encontro. Então, quando ela chegou, ela falou manda um abraço para sua sobrinha e que bom ter você nesse lugar agora.
E eu falei para ela da importância dela na vida da gente também enquanto professor, porque eu lembro que várias vezes eu levava trechos do livro dela para os meus alunos e mostrava um documentário dela também de vida pra esses alunos que vivenciam tanta violência dentro da favela da Maré, nas escolas públicas. Então o diálogo foi um pouco disso, ela dizendo que estava ali para impulsionar também a educação no Brasil, junto com o ministro Camilo Santana. Então foi importante.
ON: Ministra, vamos fazer mais duas questões para terminar. Falou-se aqui da Malala. Ela não é negra, mas pode inspirar. No Brasil, como é que vê este Brasil em que negros e não negros se inspiram mutuamente? O que é que é preciso para chegar lá?
AF: É preciso uma educação antirracista. E eu falo educação não só educação básica, primária e secundária. Eu falo a educação como um todo, de um letramento racial, de uma empatia, de se colocar no lugar de pessoas negras. Eu sinto a falta disso no Brasil ainda. Eu sinto os olhares quando passa uma mulher negra com turbante ou com uma roupa colorida. Aquele olhar de desprezo ainda. As pessoas estão se perdendo dos seus valores, infelizmente. A gente tem visto e acompanhado muito isso. Esse descaso, esse desprezo com pessoas negras que às vezes, mesmo ascendendo socialmente, como é o caso do Vinícius Júnior, que é um menino jovem de 22 anos, que é um menino negro. Ainda assim as pessoas não têm empatia de olhar com carinho, com cuidado e falar “nossa, que bom que ele venceu”.
Ele foi uma exceção à regra. Falta muito no Brasil. A gente sempre fala que a luta vai ser difícil, a gente indo sozinho, obviamente. E seria muito melhor se tivéssemos todos juntos, unidos por uma questão que quando o povo negro brasileiro tiver ali a sua ascensão social, conseguir ter acesso a espaço, acho que o país inteiro ganha com isso.
A Angela Davis fala isso. Quando uma mulher negra se movimenta, ela movimenta toda uma estrutura da sociedade e as pessoas para além de serem antirracistas, tem que agir tais como. E isso é uma mudança de mentalidade que a gente tem custado um pouquinho ainda.
ON: Aqui no palco do mundo, onde a nação que tem mais negros no mundo vai falar para inspirar. Há que se combater o racismo na África, combater o racismo em vários outros cantos do mundo. O que é que falta para o mundo todo? Está também a fazer liderança global? O que é que falta para o mundo todo perceber?
AF: Eu sempre acreditei que liderar pelo exemplo é sempre a melhor maneira. Eu acho que quando a gente comprova com dados, com a nossa experiência de vida, com ações ou políticas públicas que deram certo, eu acho que aí a gente consegue inspirar. Mesmo sabendo que hoje a gente está nessa posição de liderança global, por exemplo, quando a gente fala de violência política, a Marielle é um exemplo crítico e clássico de violência política.
Então, quando nós estivemos na ONU em 2021 e 2022, a gente falar sobre isso e trazer números foi importante. Eu acho que é assim que a gente consegue liderar mundialmente, trazendo a nossa empatia e o nosso respeito. Provando que no Brasil, tanto quanto na África e em outros tantos lugares, a gente ainda passa por muita violência, racismo, mas que com a nossa resistência a gente consegue ficar.
Mas eu sei que é difícil ter resistência com fome, com bala perdida, sem casa para morar. Então o que a gente pode fazer é tentar ajudar e incidir em políticas públicas eficazes de ações afirmativas no mundo inteiro.
ON: Ministra, a sua gestão também tem sido marcada por viagens, inclusive internacionais, colaboração com outros países. Em particular aqui com os Estados Unidos, que é um país que também tem uma luta antirracista de muitos anos, que paralelos que a senhora observa? Que inspirações que o Brasil pode trazer para o contexto americano e vice-versa?
AF: Sim. Acho que primeiro as nossas produções intelectuais. Acho que esse é um marco. Eu acho que a gente pode também ter muita troca na área de segurança pública. Por isso, quando nós retomamos o Japer (Plano de Ação Conjunta para Eliminar a Discriminação) agora, que é algo de 2003, depois de 2008 e ficou parado de 2013 para cá. A gente assinou agora junto com embaixadora Linda Greenfield e com a Desirée, que é Chief of Department aqui dos Estados Unidos, a retomada do Japer com aporte de US$ 500 mil para essa troca. Mas para além desse trabalho na educação, que é um ponto xis de trazer e levar pessoas daqui para lá e de lá para cá, também o combate, o enfrentamento ao genocídio da população negra, trazendo cultura, falando do esporte.
Então, nos Estados Unidos especificamente, todo e qualquer acordo que a gente venha a ter para combate à discriminação racial vai passar pelo Japer e a gente já começou esse trabalho. Foi a primeira reunião de Embaixada e foi a primeira viagem na comitiva do presidente Lula que eu fiz ainda em fevereiro, para que a gente pudesse estar retomando essa questão.
ON: Algo mais a dizer no final desta entrevista aqui neste podcast sobre o Brasil como espelho do mundo, no exemplo pela igualdade racial?
AF:A importância de a gente estar de volta nesse cenário internacional político com igualdade racial. Acho que foi histórico estar aqui em fevereiro, foi histórico nós termos ido para Portugal e Espanha também junto ao presidente Lula. Mas também é histórico ter um presidente que cuida e vem trazendo cada vez mais fortalecimento de políticas de ações afirmativas. E a gente vai permanecer aqui com muita seriedade, transparência no nosso trabalho também para isso,
ON: Muito obrigado. Igualdade racial, ativismo, mais educação e acima de tudo, futuro, foram temas desta conversa com Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial do Brasil, que está aqui nas Nações Unidas.
Fonte: ONU News – Foto: ONU News