“Existe um ambiente internacional que não favorece os direitos das mulheres”, diz ex-presidente da Assembleia Geral
A equatoriana María Fernanda Espinosa é a entrevistada do Podcast ONU News deste 26 de julho. Com uma carreira marcada por posições de destaque, ela foi responsável pelos Ministérios das Relações Exteriores, da Cultura e da Defesa em seu país e se tornou a primeira latino-americana a presidir a Assembleia Geral da ONU.
Atualmente, ela dirige uma rede de mulheres notáveis, GWL Voices, que superaram estereótipos e preconceitos para alcançar postos de comando. O grupo se dedica a debater e promover a equidade de gênero nas agendas dos órgãos multilaterais e outros espaços de relevância.
Para Espinosa, o momento é desafiador, uma vez que o “ambiente internacional” não tem favorecido o progresso dos direitos das mulheres.
Acompanhe a conversa com Monica Grayley e Mayra Lopes. Espinosa também reflete sobre proteção da Amazônia, língua portuguesa e sobre a rede de ex-chefes de Estado e governo e outras líderes que inclui Hillary Clinton, Helen Clark, Helen Johnson Sirleaf e Susana Malcorra entre outras.
Nessa entrevista, as perguntas foram feitas em português e as respostas dadas em espanhol.*
ON: A senhora possui uma trajetória admirável na promoção da equidade de gênero e empoderamento feminino. Gostaria de saber como essas discussões, tanto em âmbito político quanto na sociedade em geral, podem contribuir para a representação e inclusão de minorias, como a comunidade Lgbtqia+.
MFE: Eu adoraria falar português. Eu entendo tudo, leio tudo, mas ainda preciso aprender a falar. Obrigada pela sua pergunta. Na verdade, agora sou a diretora executiva da Global Women Leaders Voices. É uma rede global em 41 países de mulheres, ex-primeiras-ministras, ministras das Relações Exteriores, altas funcionárias das Nações Unidas, trabalhando basicamente para que o sistema multilateral coloque as mulheres no centro e olhe para a igualdade de gênero como um componente central de um sistema multilateral eficaz.
De fato, tenho este generoso resumo do meu currículo que a Monica fez, significa apenas que tenho alguns anos, já muitos anos, e aprendi que nenhuma instituição, nenhuma política, nenhum modelo de desenvolvimento pode funcionar se não considerar 50% da população.
Infelizmente, vemos que o progresso rumo à igualdade não é um progresso contínuo, não é que estejamos melhorando a cada dia. Infelizmente, temos contratempos. Neste momento, existe um ambiente internacional que não favorece os direitos das mulheres e a igualdade de gênero.
GWL Voices, nossa organização, atua em diferentes áreas da agenda internacional. Claro, estamos muito comprometidos com a agenda de reforma das Nações Unidas na perspectiva das mulheres, garantindo que cada vez que reinventarmos uma instituição, que melhorarmos as formas como o sistema das Nações Unidas toma decisões e as executa, 50% da população esteja envolvido na tomada de decisões, mas também no conteúdo das decisões multilaterais,
Se isso não acontecer, a legitimidade, a força, a capacidade de implementar acordos internacionais serão diminuídas. Ou seja: colocar a mulher no centro, considerando 50%, é um ganha-ganha. Não há sistema, não há economia, não há instituição que funcione bem onde não há igualdade de gênero.
ON: Sua passagem pela presidência da Assembleia Geral foi bastante intensa. Houve muito trabalho, sete prioridades, uma para cada dia da semana. Por que ainda as mulheres continuam em desvantagem, principalmente em cargos executivos?
MFE: Acho que tinha que aproveitar cada, cada minuto, não só da minha presidência da Assembleia Geral das Nações Unidas, mas em cada cargo público, cada oportunidade que você tem de ter visibilidade, de ser olhada e ouvida. Devemos aproveitar cada minuto para falar sobre a importância da liderança feminina, a importância de fechar as brechas de gênero em todos os aspectos, nos aspectos salariais, nos aspectos de participação política, na manutenção da paz no mundo. Em todos esses aspectos, o papel e o espaço da mulher são essenciais.
Não é apenas uma questão de números, embora os números importem, é uma questão de qualidade: o que contribuímos para os sistemas democráticos, o que contribuímos para a economia, muitas inviabilizadas no trabalho de cuidados, por exemplo, o que contribuímos no direito internacional.
As pessoas esquecem que muitas das mãos que escreveram a Carta das Nações Unidas eram mãos femininas. E isso não deve ser esquecido. Uma das primeiras presidentes da Assembleia Geral das Nações Unidas, Vijaya Lakshmi Pandit, irmã de Nehru, porque foi uma grande revolução no sistema internacional e é uma pena que, em 78 anos, apenas quatro mulheres tenham presidido a Assembleia.
A organização que tenho a honra de presidir está fazendo um apelo aos Estados e pedindo que além da rotatividade regional na presidência da Assembleia Geral, deve haver alternância de gênero. Queremos ver mais mulheres no sistema internacional, mais mulheres tomando decisões nos níveis mais altos.
Vantajosamente, temos um secretário-geral que é feminista e que já fez muito dentro da organização. Agora, devemos multiplicar essa energia em prol dos direitos das mulheres em tudo o que fazemos. E isso não é algo dado, não temos que tomar como algo conquistado, porque os retrocessos que estamos vendo agora são muito preocupantes.
ON: Gostaria de ouvir seu comentário sobre representatividade, cotas e políticas afirmativas. Na política, muitos partidos acabam levando adiante a questão numérica, mas não dão espaço para que elas ocupem espaços de decisão. Qual sua opinião?
MFE: Vou confessar que em algum momento da minha vida eu disse que o sistema de cotas não era necessário porque nosso mérito nos torna dignos de estar nos mais altos espaços de decisão. Mulheres na ciência, mulheres no mundo das novas tecnologias e inteligência artificial, mulheres no setor de segurança e defesa… Temos méritos suficientes e vamos chegar lá.
Mas isso não é verdade. Não funciona assim porque temos sociedades machistas, patriarcais, temos culturas que favorecem a discriminação e a exclusão. Portanto, mais do que nunca são necessárias ações afirmativas, cotas, políticas deliberadas, leis que favoreçam a inclusão da mulher.
Não funciona assim porque temos sociedades machistas, patriarcais, temos culturas que favorecem a discriminação e a exclusão. Portanto, mais do que nunca são necessárias ações afirmativas, cotas, políticas deliberadas, leis que favoreçam a inclusão da mulher.
Vejamos o número de mulheres chefes de Estado e de governo que temos no momento. Continuamos a ter Parlamentos onde há apenas 25% da presença de mulheres, um sistema internacional que, apesar dos esforços que se têm feito, não é representativo nem igualitário.
Num estudo realizado pelo GWL, que apresentamos em março e agora temos a versão número dois para setembro, temos monitorado as organizações internacionais e o nível de representação das mulheres. Vemos que, por exemplo, 12 organizações internacionais nunca tiveram uma mulher no cargo principal.
Vemos que ao longo da história, desde a criação do sistema das Nações Unidas, a presença de mulheres foi minoritária e esse monitoramento vai ser como uma espécie de grande plataforma em tempo real para ver como o sistema e a paridade estão sendo construídos ou retrocedendo.
Então, acredito que temos que monitorar permanentemente, levantar a voz e trabalhar com os Estados-membros, trabalhar com a liderança das Nações Unidas, que, como eu disse, é muito favorável às questões de representatividade e igualdade, para que tenhamos um mundo mais igualitário e, portanto, mais efetivo e mais representativo, não só da composição demográfica mundial, mas mais representativo em sua diversidade e na capacidade que nós, mulheres, temos de transformar.
ON: A presidente é geóloga e especializada em questões amazônicas. Como salvar a Amazônia da mudança climática e de grupos que atuam de forma criminosa na região?
MFE: Eu acredito que a questão da Amazônia é uma das questões mais importantes do mundo, por quê? Porque a Amazônia é um grande sistema que equilibra a dinâmica global, não só dos oito países que compõem a bacia amazônica, mas também a regulação dos ciclos das águas, dos grandes repositórios e a diversidade biológica do planeta estão na Amazônia.
Eu acredito que a questão da Amazônia é uma das questões mais importantes do mundo, por quê? Porque a Amazônia é um grande sistema que equilibra a dinâmica global
Uma riqueza cultural gigantesca, centenas de povos indígenas habitando a Amazônia. A Amazônia não é um espaço vazio, é um espaço habitado, geralmente habitado por populações que vivem em condições de pobreza e extrema pobreza, e por povos indígenas que devem ter seus direitos individuais e coletivos plenamente respeitados.
Então, a questão amazônica, embora os países que compõem a bacia sejam soberanos nas decisões que tomam sobre a Amazônia, a Amazônia também é uma responsabilidade comum e compartilhada mundialmente.
Temos visto com grande interesse o presidente [Gustavo] Petro, o presidente [Luiz Inácio da Silva] Lula, convocando uma cúpula amazônica, porque a Amazônia exige um modelo de desenvolvimento diferente, baseado no uso inteligente da natureza em benefício das populações amazônicas e um sistema compensatório global que reconhece os serviços ambientais e ecológicos prestados pela Amazônia.
ON: Como a GWL atua para atrair mais mulheres na política? E o que vocês falam nesses encontros por exemplo quando estão Hillary Clinton, Helen Clark, Espinosa, Bachelet…?
MFE: Bem, antes de tudo, o que a GWL faz é operar em rede, usar as vozes de todas essas mulheres para fazer uma defesa informada dos direitos das mulheres, especialmente no sistema internacional.
Geramos nosso relatório, que está traduzido para todos os idiomas, onde monitoramos a presença de mulheres em cargos de poder e decisão no sistema internacional, mas também trabalhamos questões femininas, paz e segurança, justiça climática e questões femininas, trabalhamos violência de gênero por meio de equipes de trabalho.
Temos toda uma rede que produz informação e conhecimento. Temos uma grande linha de trabalho que continua e contribui para todo o sistema de reforma das Nações Unidas para a implementação de Nossa Agenda Comum. Estamos nos preparando para a Cúpula dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a Cúpula do Futuro em 2024, sempre trazendo a perspectiva das mulheres, dos direitos das mulheres, das questões de igualdade.
Porque não devemos pensar que este é sempre um tema que está presente e trazemos essa voz, como diz a nossa presidente e fundadora, “não somos ativistas, somos influenciadores”. Usamos as redes que temos, as pessoas que conhecemos, nossos níveis de acesso e influência em benefício das mulheres.
Trabalhamos muito com jovens, com jovens profissionais, com jovens na diplomacia, através de um programa onde damos voz às jovens e interagimos e aprendemos umas com as outras, trazendo nossos muitos anos de experiência e elas trazendo seus conhecimentos também.
Então, fazemos um trabalho intergeracional muito importante e, como eu disse, estamos presentes em 41 países ao redor do mundo.
De que falamos? Estratégia. Como chegar lá, como influenciar, como transformar, quem fala com quem, quais são os problemas da humanidade, a preocupação que temos com o Afeganistão e a preocupação das mulheres no Afeganistão, das mulheres em todos os países em conflito armado e como podemos influenciar para garantir que as mulheres sejam atores de seu próprio futuro, agentes de seu próprio futuro e não vítimas de violência.
O trabalho é longo, mas é empolgante. E quando nos reunimos, bem, acho que o mundo deve tremer um pouco porque usamos o poder e a influência que podemos ter para tornar o mundo mais igualitário, mais pacífico e um mundo melhor, não só para nós, mas para as gerações futuras.
ON: e para terminar, uma vez que a sra. estudou português…qual a sua palavra preferida na língua portuguesa?
MFE: Eu quero dizer que eu amo o português, eu entendo, eu leio. Quando fiz o mestrado em Estudos Amazônicos, a maioria das nossas aulas era em português, então eles nos ensinavam o que se chama de português instrumental. Em outras palavras, para poder usá-lo. E leio tanto que gosto de ler poesia em português. Eu amo a poesia de Thiago de Mello, um poeta amazônico do Brasil. Uma das minhas palavras favoritas é “borboleta”.
ON: Muito obrigada pela sua entrevista à ONU News.
MFE: Muito obrigada.
Fonte: ONU News – Foto: ONU/Loey Felipe