00O bolsonarismo é um fenômeno que faz parte de uma onda mundial de extrema direita, mas não somente: é produto de uma histórica nacional republicana que sempre flertou com os extremismos. A combinação do presente com o passado e do local com o global faz do Brasil “um laboratório da extrema direita global”. É o que afirma Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Observatório da Extrema Direita (OED).
Autor do livro O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo, Caldeira Neto é referência nos estudos sobre integralismo brasileiro, o maior movimento de extrema direita fora da Europa nas décadas de 1930 e 1940. Fundado por Plínio Salgado em 1932, o integralismo se inspirava no fascismo italiano e tinha como lema a mesma frase usada por Jair Bolsonaro: “Deus, Pátria e Família”.
Em entrevista à DW, Caldeira Neto comenta os atos extremistas de 8 de janeiro em Brasília, quando milhares de bolsonaristas invadiram e depredaram os palácios dos Três Poderes.
O pesquisador pondera o uso do termo “terrorismo” para se referir aos atos golpistas e também ressalta a “sanha” desses extremistas de destruir o que eles julgam ser elementos de uma “sociedade em decadência”, como as obras de arte atacadas durante a invasão. Assim, mais que um projeto político, o bolsonarismo seria um projeto de destruição.
“O bolsonarismo pode ser entendido como uma forma de transformação absoluta da sociedade por meio de um processo de perseguição de inimigos e dos considerados diferentes, e da destruição de uma ideia de nacionalidade”, alerta.
DW Brasil: É possível apoiar o bolsonarismo sem apoiar a pauta da extrema direita?
Odilon Caldeira Neto: Existem militantes e lideranças dentro do bolsonarismo que preferem outras formas de autorreferência, como patriota ou nacionalista. Para além da denominação, o bolsonarismo é, sim, um fenômeno da extrema direita, porque faz uso da violência e está fundamentado numa perspectiva de militarização da sociedade dentro de um viés antidemocrático, além de, em sua grande maioria, estar pautado na negação dos direitos humanos e na perseguição das minorias.
Agora, há lideranças que ou se aproximam dos principais discursos e reivindicações ou até participam efetivamente do movimento, mas usam estratégias para se enquadrar nos limites institucionais. Porém isso não quer dizer que eles não tenham uma natureza política ligada à extrema direita brasileira.
O bolsonarismo pode ser comparado ao fascismo?
Na minha leitura, o bolsonarismo tem uma dimensão multifacetada. Ele tem várias tendências do extremismo de direita, mas eu teria cautela em enquadrá-lo exclusivamente no fascismo ou neofacismo. Por um lado, o bolsonarismo faz uso do fascismo clássico em lemas e simbologias – por exemplo, o lema “Deus, Pátria, Família”, que vem do integralismo e ao qual recentemente Bolsonaro adicionou o termo “Liberdade” –; nos discursos políticos, como aquele caso em que Ricardo Alvim citou Goebbels*; e no que se entende sobre fazer política, entendido como o mesmo que neutralizar os inimigos políticos. Em outra perspectiva, o bolsonarismo vê a política como um campo de purificação e de regeneração de uma sociedade que eles consideram em decadência. O bolsonarismo pode ser entendido como uma forma de transformação absoluta da sociedade por meio de um processo de perseguição de inimigos e dos considerados diferentes, e da destruição de uma ideia de nacionalidade.
*Ricardo Alvim foi secretário de Cultura no primeiro ano do governo Bolsonaro. Ele foi demitido do cargo em 2020 após parafrasear um discurso de Joseph Goebbels (ministro da Propaganda de Hitler) em um pronunciamento na internet.
A destruição das obras de arte do Palácio do Planalto pelos bolsonaristas tem relação com esse projeto de transformação absoluta da sociedade brasileira?
A sanha pela destruição que vimos no domingo não é somente por destruir a dimensão institucional democrática, é uma sanha pela destruição de tudo aquilo que possa representar para os bolsonaristas um mundo decadente, degenerado. Os indivíduos que destruíram essas peças veem os produtos culturais como símbolo de uma ideia desvirtuada de nação. A destruição das obras de arte não foi uma mera coincidência, ela deve ser vista como uma tentativa de destruir uma ideia de elite artística e de intelectualidade pertencentes a um tipo de nacionalidade brasileira que esses indivíduos rejeitam.
Você concorda com a denominação de “terroristas” atribuída aos bolsonaristas que atacaram os prédios da Praça dos Três Poderes?
Acredito que é um debate que precisa ser melhor pavimentado, porque envolve tanto o campo conceitual como o jurídico. É uma questão muito mais do âmbito legal que acredito que será melhor desenvolvida nas próximas semanas. No campo conceitual, o uso do terror como forma de se pensar a política e como forma de se alcançar objetivos é um instrumento ancorado dentro do extremismo de direita de maneira global. Nesse sentido, o terrorismo doméstico é um problema global que o Brasil tem reproduzido em grande escala, seja do ponto de vista de ação individual, como a invasão de escolas por alunos armados, um tipo de terrorismo que temos visto acontecer por aqui nos últimos anos, seja de forma mais organizada, em que grupos usam o terror como mecanismo de atribuição política.
O Brasil se tornou um terreno fértil para a extrema direita global?
O Brasil é um laboratório da extrema direita global no sentido de que há uma produção local de referências para o extremismo de direita internacional. Isso quer dizer que o país se enquadra em uma nova onda global do extremismo, mas seria equivocado pensar que o país é um mero importador e reprodutor dessa agenda internacional. A história da política republicana brasileira está relacionada ao extremismo de direita quando pensamos no integralismo. O país tem uma larga história com essa pauta. Essa particularidade histórica tem servido de combustível para se pensar a política nacional ao longo de gerações. Por exemplo, no assalto aos prédios institucionais ocorrido no domingo, a questão militar não é apenas um apelo desses grupos extremistas às forças militares, é também uma ideia antiga do extremismo de direita nacional de reivindicar a militarização da política e da sociedade e de politização das classes militares brasileiras. Essa interação entre o fator histórico e o fator atual do problema – a crise das democracias é um elemento global no extremismo de direita atual – faz do Brasil uma indústria de produção local de extremismos.
As redes sociais, na sua avaliação, é o campo de maior expressão da extrema direita brasileira?
Ao mesmo tempo em que as redes sociais oferecem várias formas de articulação e possibilidade de ampla disseminação de conteúdos de extrema direita, essas mesmas redes sociais foram complacentes com a disseminação de discursos extremistas. Isso fez com que as redes sociais não fossem apenas uma plataforma de disseminação de conteúdo, elas se tornaram um campo de formação de militantes e um espaço de radicalização do indivíduo.
Apesar de estar ativo nas redes sociais, Jair Bolsonaro ainda não alterou a descrição do seu perfil no Twitter de “Presidente da República Federativa do Brasil. Candidato à reeleição”. É um mero descuido ou um recado?
É uma tática de Bolsonaro. Mantendo esse perfil, ele faz um aceno às reivindicações dos grupos extremistas de que existiu um processo fraudulento das eleições e de que o verdadeiro vencedor foi Jair Bolsonaro. Sustentar essas reivindicações golpistas não só justifica a articulação e a radicalização desses grupos, também projeta teorias da conspiração em torno de uma ideia de possibilidade de retorno de Bolsonaro.
Fonte: DW Brasil/Foto: Adriano Machado/REUTERS