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O desafio democrático

Fossem tempos normais, não haveria dilema maior. Dois turnos servem exatamente para isso: no primeiro, escolhe-se por convicção; no segundo, mais por exclusão. Ocorre que não vivemos tempos normais, nem no Brasil nem no mundo.

Nunca antes estivemos diante de um fenômeno como o bolsonarismo. A Ação Integralista Brasileira, criada em 1932 por Plínio Salgado, inspirada no fascismo italiano e num catolicismo ultraconservador, não foi um fenômeno de massas. Em democracia, a direita sempre chegou ao Palácio do Planalto por interposta pessoa. Jânio Quadros se mostrou um estranho no ninho em Brasília. Fernando Collor sofreu impeachment. Ambos revelaram desconhecer o jogo do poder. Nenhum, porém, afrontou as instituições (Jânio, ao tentar, fez papel de tolo). Pela primeira vez, a direita chegou ao Palácio do Planalto pelo voto popular, mas para tanto teve de se dobrar ao seu representante mais caricato.

Nem todos os seus aliados políticos são extremistas, muito menos a maioria dos seus eleitores, mas quem hoje ainda tem dúvida do extremismo de Jair Bolsonaro ou da sua condição de líder do bloco de forças políticas e sociais que ele representa? O atual ocupante do Palácio do Planalto é tosco, mas não é tolo. Conhece o jogo do poder, no meio civil e no meio militar. Não tem um partido, mas é líder de um movimento, cuja força motriz é o ataque sistemático à cultura e às instituições democráticas.

O bolsonarismo não é fascista. Mas tem traços fascistas que o distinguem da direita autoritária convencional. O bolsonarismo é mobilizador. Move-se pela ideia de que há um combate a ser travado. A violência ocupa um lugar central no seu imaginário. Bolsonaro não organizou os fasci di combattimento, embriões do Partido Fascista na Itália, mas abusa do poder presidencial para dar armas à população e não hesita em incitar o seu uso contra adversários políticos. Não recruta diretamente soldados, como Benito Mussolini fez com os ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial para formar suas tropas de choque, mas mantém acesa a sua base nas forças de segurança, em particular as polícias militares, e chama as Forças Armadas de “meu Exército”. Cultiva uma masculinidade bruta, talhada para o confronto. Mussolini era um homem culto, mas teatralizava a imagem do macho atlético, corajoso e implacável.

O combate bolsonarista extravasa os limites das instituições de representação política. Alcança cada campo da vida social, da igreja aos quartéis, passando pelas escolas. Nisso ele também se assemelha ao fascismo. O uso distorcido do conceito de liberdade não esconde a tendência totalitária do bolsonarismo, visível na tentativa de controlar comportamentos em esferas da vida privada tão íntimas como são a família e a sexualidade. A coação sobre a individualidade é onipresente no campo da cultura. Deus (punitivo), Pátria (excludente) e Família (patriarcal), slogan tomado emprestado ao integralismo de Plínio Salgado, formam a tríade de uma visão retrógrada do indivíduo e da sociedade. A novidade do bolsonarismo é a adesão a um individualismo extremo e destrutivo, avesso a considerações sobre o bem comum.

Outra diferença é que Bolsonaro não quer pôr abaixo todo o edifício da democracia liberal. O fascismo elaborou uma visão sobre a organização do Estado e da sociedade em substituição à democracia liberal. O bolsonarismo não pretende destruí-la frontalmente, mas desfigurá-la pela corrosão. Não se importa em manter a fachada da democracia liberal. Não questiona o princípio da soberania popular expressa pelo voto. Prefere lançar suspeitas infundadas sobre a lisura do processo eleitoral para deslegitimar de antemão qualquer resultado que não o favoreça. Não contesta a primazia do poder civil em geral e do Tribunal Superior Eleitoral em particular, mas busca submeter o TSE à tutela das Forças Armadas para auditar as urnas e apurar os votos. Não convoca cabos e soldados para fechar o STF, mas move uma campanha de execração pública e intimidação dos seus membros e reinterpreta o artigo 142 da Constituição para difundir a tese de que às Forças Armadas caberia a resolução de conflitos entre os diferentes poderes da República. Claro, às vezes, o presidente se excede e diz o que realmente pensa: “Isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Forças Armadas assim o quer”, disse Bolsonaro, ao maltratar a língua portuguesa em discurso ao Corpo de Fuzileiros Navais no Rio de Janeiro, em março de 2019.

À falta de uma doutrina própria, o bolsonarismo transformou a religião em arma política. O clero sempre teve peso na sociedade e influência na política brasileira. Enquanto o catolicismo conservador reinou inconteste no campo religioso, a Igreja não se furtou a tomar partido das forças da ordem. Em 1964, às vésperas do golpe militar, a classe média engajou-se na chamada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. A própria laicidade do Estado acomodou-se às demandas da Igreja Católica. Nunca se viu, porém, uso tão amplo e agressivo da religião para traçar as linhas divisórias da disputa política, numa estratégia coordenada de estigmatização dos oponentes do bolsonarismo, dentro e fora das igrejas, em especial das denominações evangélicas (incluindo as mais tradicionais).

Não há um partido evangélico nem uma identidade perfeita entre o bolsonarismo e o evangelismo, mas desde a proclamação da República jamais convivemos com tal grau de politização da religião e uso religioso da política. Isso se reflete num enfraquecimento sem precedente do caráter laico do Estado. Os exemplos vão desde instruções para o aborto legal na rede do sus que respondem a crenças religiosas e não a preceitos constitucionais até a indicação de nomes para os tribunais superiores com base em critério religioso. 

Não estamos nos anos 1930 do século passado, quando se deu a ascensão do nazifascismo na Europa. Mas o bolsonarismo não é um fenômeno isolado. Faz parte da onda global antidemocrática que se levantou depois da grande crise financeira da primeira década deste século. Até 2008 era uma marolinha restrita aos países em desenvolvimento.

Depois de crescer rápido durante as duas últimas décadas do século XX, o número de democracias entre esses países começou a estacionar e, logo mais, a diminuir. A observação ficou restrita aos especialistas porque não havia grande surpresa na recaída autoritária de países onde a democracia nunca havia se firmado. Depois da grande crise financeira, o quadro mudou. Partidos, movimentos e líderes antissistema ganharam terreno na Europa e nos Estados Unidos. À esquerda, despontaram o Podemos, na Espanha, e o Syriza, na Grécia, na esteira de movimentos de protesto contra a repartição socialmente injusta do ônus da crise financeira. Apesar do flerte inicial com o bolivarianismo sul-americano, então em alta na América Latina, os partidos antissistemas de esquerda confluíram para o leito da democracia liberal, buscando alargá-lo com a participação de novos atores sociais e revolvê-lo para que temas submersos (desigualdade, meio ambiente, igualdade de gênero) viessem à tona com força. Tiveram êxito limitado.

Maior foi o sucesso da direita antissistema. Prometendo a restauração de um passado idealizado, apelando à xenofobia étnico-religiosa, mobilizando o medo e o ódio aos imigrantes e a frustração contra as perdas reais e imaginárias da globalização, tomou de assalto o Partido Republicano, nos Estados Unidos, empurrou o Partido Conservador, no Reino Unido, para uma posição de ruptura com a União Europeia, entrou para o mainstream da política italiana e francesa, chegou ao poder na Hungria e na Polônia.

Se no passado houve uma Internacional Comunista, hoje quem melhor se articula internacionalmente é a extrema direita. Depois da queda da União Soviética, o fantasma do comunismo se tornou isso mesmo, um fantasma, como aquelas estrelas que já morreram, mas cuja luz ainda se vê. Já a extrema direita cresce e se articula em toda parte, com apoio decisivo nos Estados Unidos e com recursos do Kremlin, que até a eclosão da guerra na Ucrânia financiou partidos nacionalistas e xenófobos na Europa. Maior das repúblicas da defunta União Soviética, a Rússia se tornou, sob Vladimir Putin, parte importante da rede internacional formada por cristãos fundamentalistas, nacionalistas xenófobos e ultraconservadores, da qual fazem parte também os negacionistas da mudança climática. Deus, Pátria e Família, em luta contra o chamado “marxismo cultural”, designação absurda e pejorativa de toda e qualquer ideia que remonte ao Iluminismo e à modernidade, em suas variadas vertentes. 

Não se deve desconsiderar esse contexto na avaliação do risco que representa a reeleição de Bolsonaro para a democracia no Brasil e mesmo no mundo. Maior país da América Latina, uma das quinze maiores economias do planeta, aqui se trava uma batalha importante para reverter a onda global antidemocrática.

Dessa perspectiva, não percamos de vista os Estados Unidos, o principal centro de irradiação da extrema direita mundial. São conhecidas as afinidades e ligações entre o bolsonarismo e o extremismo norte-americano de direita. Ambos compartilham a crença de que a política é um combate travado em todas as dimensões da vida social, da família ao Estado, passando pela escola, a mídia, as igrejas. As instituições políticas são espaços a ser conquistados e utilizados como centros estratégicos de poder para vencer o inimigo, e não como um conjunto de regras escritas e não escritas que permite aos adversários políticos resolver seus conflitos de modo não violento. Nesse combate, nem as regras do jogo democrático nem as regras da objetividade factual merecem deferência.

Tão importante quanto o que ocorreu em 6 de janeiro de 2021 no Capitólio é o que vem ocorrendo nos Estados Unidos desde então. O assalto à sede do Congresso, para impedir a confirmação do resultado eleitoral que dera a vitória a Joe Biden, não foi um incidente. Foi o ponto culminante de uma estratégia longamente preparada com base na mentira de que as eleições estavam sujeitas a toda sorte de fraudes. Qualquer semelhança com a sistemática investida do bolsonarismo contra as urnas eletrônicas e o TSE não é mera coincidência.

A mentira visa atingir a democracia no seu pilar central: a alternância no poder determinada pelo resultado eleitoral e a aceitação do veredito das urnas por parte do candidato derrotado. Ela tem um duplo e estratégico propósito: testar ao limite a resistência das instituições democráticas e, na hipótese de não produzir de imediato o efeito pretendido, ou seja, um golpe de Estado, impulsionar em seguida uma campanha de deslegitimação do presidente eleito.

Vista dessa perspectiva, a estratégia da Grande Mentira (The Big Lie) se mostrou um sucesso. Em torno dela, a extrema direita manteve tão ou mais mobilizada a sua base de militantes e o seu controle sobre o Partido Republicano. O assalto ao Capitólio fracassou, mas o ataque às instituições eleitorais continua em cada estado, em múltiplas investidas para dificultar o voto dos grupos sociais e raciais nos quais o Partido Democrata predomina. O Partido Republicano coordena essas investidas, mas a lógica que as coloca em marcha não é a de um partido convencional e sim a de um movimento de fundo religioso, que enxerga a luta política como um combate travado em nome dos valores da cristandade, no caso norte-americano, associados à herança europeia e, portanto, à população branca. Quarenta anos atrás, quando Ronald Reagan se elegeu presidente, o fundamentalismo cristão era uma força ascendente, mas ainda marginal no Partido Republicano. Hoje é a alma do Grand Old Party. Um tipo amoral e oportunista como Donald Trump soube instrumentalizar o fundamentalismo branco evangélico e expandir as suas fronteiras apelando aos trabalhadores industriais empobrecidos pela automatização e remoção de indústrias no Cinturão da Ferrugem (Rust Belt).

Os riscos à democracia norte-americana são crescentes e não decrescentes, como se podia imaginar depois da vitória de Biden sobre Trump. As chances de o trumpismo retornar à Casa Branca em janeiro de 2025, com ou sem o ex-presidente, são reais. Somos testemunhas do mais amplo ataque aos direitos civis e políticos nos Estados Unidos desde o final do século XIX, quando, após a Guerra Civil, o Norte, embora vitorioso, aceitou que os estados do Sul, derrotados, adotassem leis de segregação racial. As conquistas alcançadas cem anos depois da abolição da escravidão, com o Voting Rights Act, aprovado em 1965, que proíbe a discriminação eleitoral com base na raça, estão sob ataque.

O mesmo acontece com os direitos civis. É o que se viu na decisão recente da Suprema Corte sobre o direito ao aborto. Ao derrubar a jurisprudência fixada no caso Roe versus Wade, de 1973, a maioria conservadora do tribunal permite aos estados proibir o aborto mesmo em caso de estupro ou risco à saúde da mulher. Em alguns deles, como o Texas, já entraram em vigor leis que preveem longas penas de prisão para quem praticar o aborto ou facilitá-lo, além de estímulos para denunciar os “criminosos”. A decisão de 1973 se apoiou na ideia de que as liberdades individuais incluem o direito à autonomia e à privacidade no uso do próprio corpo. O mesmo conceito dá base ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, incluído o direito de adotarem crianças e constituir família. A ampla maioria conservadora na Suprema Corte, assegurada pelo bloqueio dos senadores republicanos à nomeação de um juiz indicado por Barack Obama, prenuncia a derrubada de outros direitos considerados anátemas pelo fundamentalismo religioso. Em seu voto contra Roe versus Wade, o juiz Clarence Thomas, casado com uma militante ultraconservadora, já deu o sinal nessa direção para encorajar a base republicana a não se contentar com essa vitória.

Outro alvo da Suprema Corte são as políticas federais de mitigação da mudança climática. Pouco menos de uma semana depois de restringir o direito ao aborto, a maioria republicana no tribunal limitou o poder da Agência de Proteção Ambiental (epa, na sigla em inglês) de estabelecer limites para a emissão de gases do efeito estufa.

Nos Estados Unidos se trava a mãe de todas as batalhas para o futuro da democracia (para não falar na mudança climática). Os resultados são incertos e os ventos não sopram em boa direção. 

Voltemos ao Brasil e ao dilema colocado na abertura deste artigo. Não tenho respostas definitivas, mas algumas considerações me parecem importantes para resolvê-lo, nos dois meses que temos até o primeiro turno das eleições presidenciais. A primeira delas diz respeito à caracterização da política brasileira atual como um campo de forças polarizado por dois extremos. A imagem falseia a realidade. Não há dois, mas um só extremista a protagonizar a disputa política, como escreveu Míriam Leitão em O Globo, no artigo intitulado Centro Não É o Ponto entre Dois Extremos. A jornalista é certeira ao escrever: “O centro deve procurar seu espaço, seu programa, seu candidato, ou seus candidatos, porque o país precisa de alternativa e renovação. Mas não se deve equiparar o que jamais teve medida de comparação.”

Aos 45 minutos do segundo tempo da pré-campanha, o centro encontrou uma candidata a presidente, a senadora Simone Tebet (MDB-MS). É um excelente nome. Não tenho dúvida de que a candidata encontrará o seu programa, dada a qualidade das equipes que pode recrutar para esse fim. A questão que resta responder é: encontrará o seu espaço? Faço essa pergunta com um olho nas pesquisas e outro no mapa das identidades político-ideológicas. Não tenho a fórmula mágica da decolagem nas pesquisas de intenção de voto, mas estou convencido de que se apresentar como a opção equidistante entre dois extremos é mais do que um erro de cálculo eleitoral.

Não se trata de apagar diferenças com o PT e seu candidato em temas importantes como o papel das empresas estatais e dos bancos públicos, comércio externo e políticas industriais, regras e gestão da política fiscal, mas de reconhecer com clareza e sem demora que a importância das diferenças nessas áreas é menor do que a importância de um compromisso comum com a democracia.

Não nos enganemos, é isto que está em jogo nessas eleições: o direito de continuarmos a divergir pacífica e democraticamente sobre a melhor maneira de construir um país mais justo, próspero e sustentável, orgulhoso da sua diversidade, onde a liberdade religiosa seja plena, mas as crenças não constranjam a liberdade individual nem sejam critério para a distribuição de recursos públicos, nomeações para instituições do Estado ou definição de políticas públicas, onde haja consideração pelos fatos objetivamente verificáveis e pelos métodos científicos de produção de evidências.

A segunda consideração a fazer é sobre ter ou não o PT aprendido as lições de sua longa passagem pelo poder federal. Não tenho resposta taxativa a respeito. Mas penso que o alcance da pergunta deveria ser estendido: aprendemos todos, do campo democrático, com os erros que contribuíram para impulsionar o bolsonarismo e levar Bolsonaro à Presidência da República? A primeira pergunta não deve ser dispensada. Sozinha, porém, ela bloqueia a possibilidade de construir uma ampla e duradoura aliança em defesa da democracia que não limite diferentes opções eleitorais, mas sirva de barreira de proteção contra o extremismo bolsonarista, agora, depois das eleições e no futuro mandato presidencial, seja quem vier a exercê-lo.

Dessa perspectiva, vejo com bons olhos a movimentação política do candidato do PT desde que recuperou os seus direitos políticos. A aliança com o PSB e outros partidos menores é significativa. Os socialistas atraíram Geraldo Alckmin para ser o vice na chapa de Lula. A vinda do ex-tucano para o partido foi o lance final de uma rodada de filiações que trouxe para o PSB mais três destacados políticos do campo democrático: Flávio Dino, Marcelo Freixo e Alessandro Molon. Esses movimentos, somados à reaproximação de Marina Silva (Rede), são indicações de uma nova possível configuração das forças de centro-esquerda. À falta de uma direita pura e dura, isso não foi possível no passado, quando PT e PSDB eram os partidos dominantes em nível nacional e os estímulos à competição eram mais fortes do que os incentivos à cooperação. Quem sabe agora, com novas forças e (semi) novas lideranças?

A derrota de Bolsonaro é importante também para permitir a reorganização da centro-direita. Nada é mais eloquente do estrago que o atual presidente produziu nesse campo do que o triste fim do DEM, hoje desfigurado e assimilado ao União Brasil. Antes do vagalhão bolsonarista engolfá-lo, o Democratas despontava como o possível polo aglutinador de uma centro-direita liberal com bases nos centros mais desenvolvidos do país. Herdeiro do velho PFL, na origem assentado em esquemas tradicionais da política nordestina, o DEM prometia completar a sua transição do “atraso” ao “moderno”. Também aqui, como é característico na história brasileira, a modernização ficou truncada. 

Mais importante do que o dilema eleitoral que alguns sentimos é o desafio comum que todos os democratas têm pela frente. Não é suficiente derrotar Bolsonaro nas urnas e assegurar a posse de quem vier a vencer as eleições. É preciso contribuir para que o próximo seja um governo capaz de superar a herança maldita que receberá do atual. Contribuir não significa adesão acrítica e complacência. Pode-se contribuir fazendo uma oposição leal, ao contrário do que fez o PT durante o governo FHC e o PSDB no segundo governo de Dilma Rousseff.

O país entrará em 2023 com um Estado em más condições de execução de políticas públicas, com órgãos desmantelados, a exemplo do Ibama, ou desestruturados, como o Ministério da Saúde, um orçamento com pouca margem de gasto e capturado secretamente por emendas que retalham programas em pequenas ações locais desarticuladas, sem regra fiscal clara, depois que o atual governo lançou pelos ares o teto de gastos, sem nada colocar no lugar, em um ambiente internacional adverso, devido à combinação de tensões geopolíticas crescentes, pressões inflacionárias e aperto de liquidez – um combo de problemas inter-relacionados que há muito não se via.

Navegar nessas águas exigirá perícia. A nau brasileira está avariada, sem rumo e sem lastro. Com a democracia sob ameaça, não haverá estabilidade política e segurança econômica, e o país poderá naufragar. Evitar o naufrágio requer unidade ampla para afastar a ameaça à democracia. Mas para reencontrar a rota do desenvolvimento, que perdemos ao longo da última década, é necessário mais. Sem uma carta de navegação minimamente comum, voltaremos a enfrentar tempestades e tumulto a bordo. As forças do atual capitão não abandonarão o barco.

Daí a necessidade de construir um programa mínimo comprometido com o estado democrático de direito, a estabilidade macroeconômica, o combate à pobreza e às desigualdades, a preservação e o uso sustentável dos nossos recursos naturais, a começar pelo bioma amazônico. Seria ideal que esse programa mínimo fosse construído na campanha e legitimado nas urnas. Parece pouco provável. Que seja então criado após as eleições, sob a liderança de quem a vencer. Seja quem for, deverá saber que, por maior que for sua vitória eleitoral, ela não lhe será suficiente para governar. Sem um programa claro, que expresse o melhor denominador comum entre as forças democráticas, correrá o risco de se tornar refém do fisiologismo e alvo fácil para uma extrema direita empenhada em deslegitimar desde o início o novo governo.

Fonte: Revista Piauí/Sergio Fausto

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